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As Loucuras dos discursos e a experiência do singular

Teresa Pavone (EBP/AMP)

Inicialmente agradeço ao Leonardo pelo convite para estar na última preparatória para nossa IV Jornada da EBP- Seção Sul, que está próxima de acontecer nos dias 13 e 14 de outubro. Quando recebi o convite, conversando com o Leonardo a respeito do que ele estava pensando sobre o tema dessa preparatória ele me falou da ideia de fazê-la a partir de um testemunho. Ele havia lido dois livros neste sentido, e pensava também de como cada um se arranja com o seu real, com o singular na cultura.  E então ele agregou que estava pensando nas construções, nos discursos como delírios. Os discursos seriam todos “delírios”? Logo me ocorreu pensar no livro de Catherine Clément: A louca e o Santo.

Catherine Clément é uma escritora, filósofa, crítica literária e ensaísta francesa. Autora de mais de trinta livros, publicou uma vasta obra pautada em sua formação de filósofa, historiadora, com conhecimentos em antropologia e em estudos aprofundados também em psicanálise, ela assistiu às apresentações de casos de Lacan no Hospital Sant Anne e frequentou todos os seus seminários. Consagrou-se, com grande sucesso, como romancista e com ensaios e romances no estilo de ficção, tendo hoje suas obras traduzidas para 24 línguas.  Atualmente, aos 85 anos, continua vivendo em Paris. Sua obra é reconhecida no mundo todo.

Sudhir Kakar, parceiro de Catherine nesta obra, é um psicanalista indiano que resolveu trabalhar junto a ela para traçar um paralelo entre a vida e o tratamento de uma louca internada em Paris no hospital psiquiátrico Salpétrière, aos cuidados do psiquiatra Pierre Janet durante anos, e a vida e o delírio do grande místico indiano, o Ramakrishna.

Kakar e Catherine costumavam se encontrar em alguns congressos científicos e em uma ocasião, Kakar contou para Catherine a história de Hamakrishna, um grande místico bengali do final do século XIX. Ela escutava atenciosamente seu amigo indiano, e reconheceu os mesmos sintomas do místico em Madeleine, a famosa paciente do psiquiatra Pierre Janet. Os dois personagens viveram, praticamente, na mesma época.

A filósofa associou às duas histórias, os mesmos tipos clínicos de delírios místicos, de catatonia, de estados de êxtase e observou que para a personagem central de uma das histórias vigorou como destino, a exclusão entre os muros de um famoso hospital psiquiátrico, pelo fato de ela ameaçar a ordem pública, por violar as normas da sociedade em que vivia e ser considerada louca. Sendo que para o personagem da outra história, o destino não menos delirante e sofrido, foi o de ser livre e gozar da notoriedade de ser um grande Guru indiano e idolatrado em seu meio cultural. As duas histórias se entrelaçavam na semelhança do sofrimento, o de como um corpo pode ser afetado, em ambos os casos, corpos tratados pelo delírio místico com um discurso religioso constituído, estruturados de uma maneira muito semelhante. O que os diferenciava é que ele fora considerado um místico bengali e vivia em Calcutá como um santo, enquanto ela considerada louca fora internada durante muitos anos.

Através de documentos que foram feitos pelos discípulos de Ramakrishna e de dois grandes volumes dos registros do tratamento e das sessões de Madaleine publicados por Pierre Janet; o psicanalista e a filósofa fizeram de seu encontro, de sua amizade, de suas autênticas preocupações intelectuais e de suas diferenças culturais, um romance de duas histórias reais, um paralelo entre a vida de um Santo e a de uma mulher louca.

Coloca-se desde o princípio, ao longo do primeiro capítulo, a ideia da canonização de Madeleine como uma santa, se ela tivesse vivido em outra época, e que, caso Hamakrishna não vivesse em uma sociedade onde tudo se explica pelo místico, sua loucura poderia ser alvo de outro tipo de intervenções e ser investigada a partir de outros parâmetros, o que provavelmente lhe daria outro destino.

Os dois acometidos de delírios místicos imaginavam ser personagens bíblicos. Ela pensava ser a Virgem Maria e ele se disfarçava de mulher, identifica-se com o deus-macaco (Hanuman) e com Krishna. Os dois falavam de si mesmo empregando os mesmos termos, seus corpos foram afetados da mesma maneira, mesmas contraturas, mesma tipo de catatonia, mesmas interrupções da respiração… Até a mudança de sexo em seus delírios lhes era comum, com frequência ele se identifica com Radha, a amante de Krishna e ela com o Menino Jesus.

Breve histórico sobre Madeleine

A família de Madeleine era católica praticante, Madeleine apresentava vários sintomas ditos psicossomáticos e até os nove, dez anos, sofria de fraqueza nas pernas que a fazia cair frequentemente, mas nenhuma anomalia muscular ou correspondência neurológica justificava aqueles sintomas. Ela também era acometida de vários outros sintomas como: tosse, vômitos, constipações e diarreias, e sempre mantinha alimentação restritiva. A catalepsia também lhe atingia quando ouvia barulhos que a assustavam.

Ela tinha muitas dificuldades nos laços sociais, e quase não brincava com outras crianças. Aos cinco anos, ela começou a julgar que tinha como missão sofrer todas as dores das outras pessoas. Aos onze anos, quando tentam fazê-la dançar para ajudá-la a sair da retração social, ela sente muito prazer no movimento da dança e a partir desse episódio Madeleine relaciona o prazer com o mal, todos os prazeres lhe causavam medo e com isso ela se privava de guloseimas, de beber água, de comer pão e nunca mais ouviu música.

A adolescência de Madaleine não foi menos perturbadora, chegando ao ponto de ela   decidir sair de casa e viver na rua como uma miserável. Sentia-se guiada por uma “força superior” e numa noite em que dormiu em um banco de rua, foi presa. No interrogatório, ao ser perguntada sobre seu nome, ela denominou-se “O Bode”, a amante de Cristo, isto no sentido de ser o bode expiatório dos pecados do mundo. Depois desse episódio, ela ainda foi presa por fraude, vadiagem, prostituição, mendicância e ruptura de exílio. Um dos policiais a escutou profetizar um complô das trevas, ela escrevia a deputados para preveni-los contra traidores.

Finalmente, depois de toda esta trajetória de errância, de prisões e perturbações, conseguem interná-la em Salpêtriere aos cuidados de Janet.

Dos sintomas de Madeleine internada em Salpêtrière

Madeleine sente-se atraída pela morte, visita e vasculha o cemitério para desenterrar dentes de cadáver. Como um renunciante, ou uma carmelita, ela celebrava seus ritos funerários, e declarava-se como morta.

Ela andava nas pontas dos dedos, e as cãibras a faziam sofrer, impossível fazê-la andar normalmente. Ela sentia-se puxada para cima como Maria, e acreditava que se o Papa a visse elevada ficaria convencido de seus sacrifícios para santificá-la. Ela planejava ir até Roma andando nas pontas dos pés, acreditava que os anjos a alimentariam durante o caminho. Uma vez na Cidade Santa, seria recebida pelo Papa, faria milagres, e se elevaria às nuvens.

Janet tenta convencê-la de que ela não estava suspensa pelas axilas como pensava, ele a pesa em uma balança e explica a ela que se estivesse suspensa seu peso diminuiria. Logicamente o peso de Madeleine não alterava na medição da balança, mas ela insistia que era o diabo que se opunha a Deus e devia estar alterando a medição da balança. Os dois pés de Madeleine eram lesionados e ela dizia que Deus era quem designava suas provações. Para Janet os ferimentos eram provocados por Madeleine inconscientemente ou voluntariamente, assim como as grandes cruzes que ela desenhava a fogo no peito.

Segundo Janet o delírio de Madeleine lhe causava todo o leque de seus sintomas e sofrimento. Madeleine era de uma magreza alarmante, pois quase não se alimentava, ingeria apenas um litro de leite por dia ou duzentos gramas de pão, sendo que os períodos que antecediam os êxtases ela não ingeria nada. Ela julgava que não era necessário comer porque os “beijos” que experimentava eram doces como mel, como licor doce e superava tudo. Sua respiração sempre muito lenta, lhe causava ainda maior sofrimento.

Em alguns momentos mantinha-se extática, em posição de crucificação, e mesmo que abaixassem seus braços, eles voltavam novamente à posição anterior em estado de catatonia. Durante o êxtase Madeleine tinha alucinações olfativas, sentia perfumes desconhecidos e inebriava-se. Tudo que ela fazia era por conta de ser serva do senhor, atendia aos comandos da vontade de Deus. Ela pintava quadros que eram ordenados por Deus e dizia querer cumprir apenas a vontade de seu Deus seu Senhor e de Janet que fora incluído em seu delírio, no lugar de Deus, ela também o obedecia como fazia ao Senhor.

Em um determinado tempo, Madeleine passou a viver vários personagens bíblicos, ora ela era Maria, pronta para trazer ao mundo Jesus, depois chegando ao nascimento de Jesus, ela se tornava a criança que havia nascido, ela simulava que dormia e que mamava. Dizia que Deus a colocou em um lugar singular e que viveria para fazer as vontades de Deus e de Janet. Neste tempo Janet é colocado por ela no lugar de São José.

Após um de seus êxtases ela disse à Janet que morreria em breve, isso aconteceria devido ao fato de que Deus a beijou por toda a parte e lhe pôs um lacre, impedindo que ela urinasse.

Em outro tempo, Madeleine se considerou o próprio Deus, atravessava espaços imaginários como a rapidez do vento, cruzava precipícios num instante e se colocava no centro de tudo. O pecado se tornou impossível de ser cometido por ela, até mesmo o prazer do sexo de que tinha tanto medo passou a não ser mais pecado porque ela era um ser de “pureza” absoluta.

Madeleine chega em um tempo em que perdeu totalmente sua fé. Quando   não acreditava mais em suas crenças religiosas, ela tirou de Janet o lugar de ser seu mestre e senhor.  Janet, durante um bom tempo, de certa forma, incentivara Madeleine aos estados de êxtases, pelo fascínio que sentia pela situação, pois evocava suas próprias experiências religiosas vividas na infância. O delírio que habitava todo ser e o corpo de Madeleine fora nesse momento substituído por delírios paranoicos, ela queria a qualquer custo denunciar um complô sobre o assassinato do presidente da República, dizia prever um atentado a Bolsa, ou a traição dos deputados. Os delírios olfativos a invadiram abruptamente e o cheiro de sangue de humano de pessoas assassinadas a atormentavam e a fazia acreditar que estava acontecendo comércio de carne humana em Paris. Pensava que estava sendo perseguida pelo diabo, e pesadelos terríveis a assombravam a noite.

Madeleine declarava sentir volúpia ao sofrer, ao ser humilhada e ser apontada como uma louca: Sim, sinto volúpia ao saborear a humilhação, eu nunca teria acreditado que fosse tão doce sentir-se considerada como uma louca.[1]

Sobre Ramakrishna

Ramakrishna nascido em 1836 era de uma família brâmane do povoado de Kamarpukur, em Bengala. Seus pais eram muito pobres e devotos. Ramakrishna era um excelente aluno na escola e motivo de orgulho para seu pai, seu grande prazer era pintar quadros e estar com os oleiros do povoado aprendendo a fazer imagens de argila dos deuses e deusas, e a ficar em uma casa de peregrinação onde ascetas errantes pernoitavam por alguns dias.

Aos oito anos ele perde o pai que já era um idoso. Um efeito de recolhimento, solidão e retração, produziu-se no pequeno menino que passou a interessar-se por assuntos espirituais e a se ligar fortemente à sua humilde e sofrida mãe, Chanda, de “alma simples”, como a ela se referia. Também foi gradativamente se desinteressando pela escola. Sua família passou por condições próximas da miserabilidade por várias ocasiões, Ramakrishna tinha vários irmãos além de Khudiram, seu irmão mais velho que assumiu para ele o lugar de um pai.

Um tempo depois, em sua adolescência, seu irmão mais velho também morre e Ramakrishna, sem o pai e sem o irmão como referência para encaminhá-lo para a vida, começou a dedicar-se exclusivamente à vida religiosa e a ajudar a mãe.

Seu primeiro êxtase aconteceu quando ainda criança passeando pelo arrozal, Ele mesmo o descreve:

“Eu estava passeando por um caminho estreito entre dois arrozais. Mascando         meu arroz, ergui os olhos para o céu. Vi uma grande nuvem negra expandindo-se rapidamente até cobri-lo inteiramente. Subitamente, da borda da nuvem uma revoada de garças brancas como a neve passou sobre minha cabeça.  O contraste foi tão bonito que meu espírito perdeu-se em regiões distantes. Perdi a consciência e caí no chão; o arroz expelido espalhou-se. Alguém pegou-me e levou-me nos braços até em casa. Um acesso de alegria e de emoção dominou-me. Esta foi a primeira vez que fui tomado pelo êxtase.”[2]

A família e sua comunidade muitas vezes suspeitavam que Ramakrishan sofria de alguma doença e começaram a suspeitar de sua sanidade, devido aos seus comportamentos considerados estranhos, mesmo que incluídos, de certa forma, na cultura mística onde é comum a prática de rituais, as danças, as induções aos estados de êxtases e as visões. Ramakrishna chegou a referir-se a ele mesmo como unmada (loucura).

Dos Sintomas de Ramakrishna

 Ele gostava de usar roupas e joias de mulheres, e sentia-se orgulhoso quando os homens não percebiam que ele estava disfarçado. Nesse período Ramakrishna teve a fantasia persistente onde ele imaginava que se tivesse que renascer seria uma “criança viúva”, que só aceitaria como esposo o Senhor Krishna.

Ramakrishna é nomeado sacerdote do templo que frequentava, lá seguia todo um ritual de adoração a Deusa Mãe: tinha que alimentá-la, dar banho, enfeitá-la e vesti-la. Para ele isto era motivo de tanto prazer que passou a dedicar todo o seu tempo a essa adoração. A adoração era tão grande que em um certo dia em que não conseguiu ter a visão da deusa mãe, tomou a decisão de tirar a própria vida, mas ao pegar a espada que se encontrava no templo, teve a visão da Deusa, e caiu inconsciente ao chão.

A família de Ramakrishna arranjou a noiva com quem ele se casou, mas desde o começo ele comportou-se em seu casamento como uma mulher ou, em seus estados extáticos, como uma criança. No primeiro caso, marido e mulher eram ambos namorados da Mãe Divina, ao passo que no segundo, a esposa era encarada como a própria Deusa.

Ramakrishna ao final de sua vida não podia comer quase nada devido a um câncer de garganta. Sua explicação para esse fato foi que ao pedir para a Mãe que pudesse comer ela disse que ele já estava comendo através da boca de seus discípulos. A explicação para suas visões era que Deus só poderia ser visto com olhos de amor e ser escutado com ouvidos de amor. Seus afetos manifestavam-se prevalentemente no corpo, às vezes tinha arrepios enquanto lágrimas de alegria escorriam sobre sua face. Em outras ocasiões, seus olhos ficavam semicerrados e desfocados, um sorriso tênue nos lábios enquanto seu corpo se enrijecia completamente e tinha que ser apoiado por um discípulo.

Ramakrishna dizia que ao chegar perto ou tocar em uma mulher ele ficava doente, suas mãos ficavam dormentes, insensíveis e doíam. Ele renunciou ao desejo sexual masculino e afirmou nunca ter sonhado com relações com uma mulher, ele comportava-se como uma mulher. Seus estados de êxtase eram frequentes e provocados, acometidos por várias perturbações corporais, visões, desmaios, perturbações alimentares etc.

Das similitudes dos sintomas entre Madeleine e Ramakrishna e dos estados de êxtases

Ramakrishna e Madeleine passaram por sintomas que lhe atingiam o corpo desde a infância precoce e na adolescência, ambos marcados por uma grande religiosidade advinda de referências diferentes e por perdas e lutos significativos. Tinham grandes dificuldades nos laços sociais e foram se distanciando, cada vez mais, da realidade objetiva do mundo cotidiano. Ambos passavam por constantes estados de êxtase e agiam da mesma maneira após as passagens por esses estados, comiam exageradamente, dando preferência aos doces, e às vezes comiam seus próprios excrementos. Os êxtases concerniam também às estranhas, acreditavam que o que ingeriam por cima deveria ser expelido na sua totalidade, por baixo.

Os dois foram acometidos de desmaios frequentes, Madeleine achava “deliciosos” seus desmaios, e ambos não temiam a perda de consciência, ao contrário, sentiam prazer.

Outro ponto de similitude é o fato de ambos exercerem uma certa sedução, mesmo sem a intenção de seduzirem, provocavam interesse e fascínio sobre eles, ele em seu povoado, junto aos seus fiéis, sobretudo as mulheres. Ela na Salpêtriere com seu médico, o professor Janet.

Ambos sentiam efusões diante da natureza, o tempo todo; o sol, os crepúsculos, as florestas, as árvores, as flores…  A natureza humana lhes fica sem importância, a natureza, o sublime, a pureza e a relação com Deus eram a causa de tudo para eles.

Eles não são nem mais homem nem mulher, nem pássaro nem peixe, eles têm uma identidade fluida, que engloba todas as manifestações da natureza.

Ramakrishna mantinha contatos físicos com seus discípulos, e dizia que não poderia ficar distante deles porque sofreria demais. Se encostava em alguma mulher, ele tinha urticária e produzia erupções. Ela sofria dos mesmos sintomas psicossomáticos.

As Visões de Madeleine com demônios eram comuns e para Ramakrishna não eram tão frequentes, ele não suportava os tais demônios e dizia que teriam que ir embora sob a forma de diarreia e lhes erão absolutamente horripilantes. Já Madeleine tinha que suportá-los já que não encontrou um meio de mandá-los embora.

Ela conversava com os animais, falava com as moscas e com os animais, assim como Francisco de Assis fazia. Ramakrishna falava com as estátuas dos deuses, as quais tinham aparência de animais.

A dança também lhes era comum apesar de Madeleine mencionar apenas uma “dança espiritual” e Ramakrishna dançar de verdade. Para a cultura de Madeleine os Santos não dançam. Mas entre o povo de Ramakrishna os santos dançam muito.

O imaginário os levava por mundos diferentes, Madeleine queria viajar em peregrinação a Roma, mas trancafiada, tida como louca, não lhe foi possível. Ele que gozava de liberdade foi em peregrinação aos lugares santos onde nasceu Krishna, a cidade de Mathura, e na cidade onde ele foi criado. Ele foi mesmo às fontes da sua cultura, assim como Madeleine gostaria de ter feito e não pode.

Ambos têm visões e são igualmente afetados por elas. O que irá diferenciar os dois, é que Ramakrishna tem uma grande base cultural que lhe dá algumas respostas para suportar esses momentos, já ela tem apenas o apoio de seu psiquiatra Janet, já que era vista como louca por todos.

A história contada por Catherine Clément e Sadhir Kakar nos apresenta a gênese e o florescimento de delírios em dois sujeitos separados por culturas distantes uma da outra, e demonstra como a invenção psicótica não é feita do nada, mas sim a partir de experiências únicas de um fazer com o corpo e  de sua disjunção do ser; através de restos, de materiais existentes, operando uma bricolagem na tentativa de se ligar ao corpo com os recursos que se tem como nos explicita Miller no texto A invenção psicótica. A plasticidade dos sintomas psicóticos é espantosamente descrita em minucias, assim como os rituais da cultura indiana.

Na França de 1886, Madeleine não tinha nenhuma chance de desenvolver livremente seu misticismo. Enjaulada, cercada de cuidados múltiplos, quase todos físicos, e tão bem que esse misticismo radical é afinal ‘curado’, quer dizer, aniquilado pela instituição hospitalar.  Mas na Índia, na mesma época, Ramakrishna encontra com incrível rapidez o caminho do reconhecimento devido a um misticismo resplandecente. Que querem dizer estas palavras, o santo, a louca, já que esse homem e essa mulher são absolutamente parecidos?” [3]

 Madeleine e Ramakrishna viveram no século XIX praticamente na mesma época, mas inseridos em culturas diferentes, uma se torna uma louca e o outro um Santo.

Em Paris, Madeleine após ser presa várias vezes e tendo sua ficha na polícia por vários outros delitos, pelo motivo destes delitos se enquadrarem  no fato de estarem perturbando a ordem pública e de que um dos policiais ter escutado seu delírio, ela acaba sendo internada no Hospital Psiquiátrico Salpêtrière. O médico Pierre Janet, que havia estudado com Charcot e cuidou dela por longos 22 anos, mencionou o fato de ela ser uma mística como foram outras mulheres na Idade Média como Santa Teresa D’Ávila, consideradas santas pela igreja, até sugeriu  que ela  havia nascido no lugar e na época errados, mas, Janet quis curá-la e readaptá-la ao mundo como uma pessoa normal, assim foi o final da vida de Madeleine “normal”, mas infeliz sem seus acessos de êxtases. Já na Índia temos Ramakrishna que mesmo tendo os mesmos “sintomas”, delírios e êxtases que Madeleine, por viver num país com uma cultura muito diferente, e o Outro Social  autenticar seu delírio, ele vira um santo, um guru.

Algumas Considerações psicanalíticas

No que nos interessa essa fina literatura além do romance que os autores imprimem às experiências delirantes místicas baseadas em personagens reais e com descrições minuciosas dos arquivos registrados de inúmeras sessões de uma paciente internada por muitos anos em um renomado hospital psiquiátrico de Paris e dos registros sobre um Guru indiano do século XVIII. Bom há muito para se comentar, este livro abre portas para muitas reflexões acerca da loucura de todos nós e da loucura de cada um, através de comentários e elaborações precisas dos autores, dos impasses entre saúde mental e psicanálise, da loucura dos tratamentos psiquiátricos… Eles escrevem sobre a gênese dos delírios místicos, relacionada à questão do ser e do corpo como disjuntos, do falasser, da invenção psicótica e da tensão do discurso do mestre ou dos discursos do mestre, e o discurso analítico. Tocam na questão do universal, do particular e do singular na trama das errâncias subjetivas.

O livro comentado nos relança ao trabalho sobre os avanços do ensino de Lacan até a construção do conceito de Sinthome. Conceito que demonstra a existência de uma foraclusão que é real para todos – a foraclusão generalizada, estrutural para o ser humano, de onde se origina a ideia da invenção para um saber fazer com o singular. O dito de Lacan “Todo mundo delira” seria dizer Somos todos loucos, psicóticos? Não, não parece tratar-se disso…

Lacan também nos faz entender que não é louco quem quer e sabemos que a psicose, a neurose e a perversão como variedade do tipo clínico existem e nos é, muitas vezes, orientadora em nossa clínica. O sujeito psicótico é aquele a quem falta um significante primordial que fica foracluído, o significante privilegiado do Nome-do-pai, e portanto, a metaforização do desejo da mãe não é alcançada. Essas estruturas no primeiro ensino de Lacan estão demarcadas em relação ao Édipo, Nome-do-pai em Lacan, que conjuga a passagem pelo Édipo e pela Castração que resulta no nome que vem dar sentido ao x enigmático do desejo da mãe por uma substituição significante – a metáfora paterna que traz certa normalização das pulsões para o sujeito no campo da linguagem. Isto seria uma figuração universal de uma época em que vigorava uma estrutura simbólica na qual a tradição funcionava como estrutura que regia a entrada do Sujeito na Cultura, pelo menos nas culturas ocidentais, e permitia ou permite a regulação das relações humanas.

Ao avançarmos no ensino de Lacan a partir do estudo da psicose, com o conceito de Sinthoma, em seu seminário 23 entendemos que esta função, a do nome do pai, não necessariamente o do pai do Édipo, daí a pluralização dos Nomes-do-Pai. Através da teoria dos “nós”, Lacan demonstra que a cada um é possível amarrar os três registros fundantes da subjetividade humana: o simbólico, o imaginário e real originalmente desatrelados. É assim que foi se demarcando a questão do real e da foraclusão generalizada, porque há um, há um gozo que não é simbolizável e que determina que a foraclusão generalizada é estrutural do ser humano. Há um gozo inassimilável, que não se pode nomear e nem se constituir em um saber, em um S2, e fazer parte de um discurso ou da fala do Sujeito, daí a necessidade da invenção e de uma construção em torno de um resto que é causa para o ser humano, mas que é único para cada um.

Sendo assim, a pergunta é: Qual o destino que o falasser pode dar a isso sem os outros, mas no laço com o outro.  A noção de lalíngua, nos faz apreender que na clínica é necessário sabermos o uso que cada um faz do Um de sua língua.

Trata-se de uma generalização da foraclusão como estrutura. Nesse sentido, Lacan propõe o conceito de lalíngua, ou alíngua enquanto um simbólico não referido ao Outro, mas ao Um, o que implica na palavra como veículo de gozo e não de comunicação, porquanto não está endereçada ao Outro. Essa referência ao Um traz implícita uma mudança na operação de estruturação do ser falante, pois propõe o gozo e alíngua como anteriores ao Outro e à linguagem, um vazio central onde Lacan marca uma exigência de gozo.  Este furo no lugar do Outro como foraclusão generalizada deve ser diferenciada da foraclusão psicótica.

 A circuncisão é um rito. Se ela não existisse e alguém chegasse dizendo: “Cortei meu prepúcio”, isso seria uma invenção, e talvez bem psicótica.                                                                    

O que Lacan e a experiência nos convida a dizer é que o corpo do ser falante é assombrado por um problema fora do corpo. É preciso que esse termo seja bem entendido. Isso não quer dizer que ele se põe a passear no espaço infinito. O órgão fora do corpo qualifica alguma coisa que escapa, mas permanece ligado. Certamente por isso é possível como fora do corpo, e não fora de outra coisa em relação à qual ele estaria longe.[4]  

O órgão – linguagem do sujeito faz um falasser, ou seja lhe atribui um ser, mas ao mesmo tempo lhe confere também um ter, seu ter essencial que é um corpo.

O dito esquizofrênico, Lacan o considera como caracterizado pelo fato de que, para ele, o problema do uso dos órgãos é especialmente agudo e que ele deve ter recursos sem o socorro dos discursos estabelecidos, ou seja ele é obrigada a inventar seus socorros, seus recursos para poder usar seu corpo e seus órgãos.[5]

Há também no livro que estamos comentando uma constante interpelação sobre a loucura, sobre a psiquiatria e a questão da “saúde mental”, se é que ela, a saúde mental, existe… Colocando em pauta as tênues fronteiras que separam a loucura da dita “normalidade” preconizada pelas psicologias e também pela psiquiatria. Encontramos, a título de exemplo, já no capítulo primeiro do livro, no subtítulo O azar de Madeleine o Bode, o seguinte trecho:

O espírito hesita longamente antes de admitir o rótulo da psiquiatria: vejamos, este homem sente-se perseguido, e se o fosse realmente? Nada implica verdadeiramente a adesão, exceto o compromisso temível que o espírito é obrigado a fazer com o real: louco este homem o é indubitavelmente desde o instante em que perturba a ordem pública, seus vizinhos, sua família e sociedade. A este critério, e somente a ele, reconhece-se a loucura. Foi exatamente assim que Madaleine encontrou a dela: dormindo sobre um banco público. E foi por ter se atrapalhado no comissariado de polícia que ela terminou num hospital, depois de um desvio na prisão, onde poderia ter permanecido por mais tempo ainda, quem sabe. O delírio de Madaleine tal como apresentado por Janet com honestidade irretocável não é contestável nem por um instante; Que comporte sua carga de verdade social não é tão pouco. Segundo nossos critérios, Madaleine pertencia à categoria dos doentes mentais, é certo.

Mas não saberíamos esquivar a questão da santidade Camponesa italiana no Messogiorno, Madaleine teria sido objeto de peregrinações, mesmo ainda hoje neste final de século XX, burguesa de província errante em Paris, ela não escapa à Salpêtrière.[6]

Lacan abordou a mística de uma nova maneira retomando a questão no Seminário 20, Mais, ainda, se referiu à ela como “algo de sério, sobre o qual nos informam algumas pessoas, e mais frequentemente mulheres, ou bem gente dotada como São João da Cruz”, e toma também o gozo de Santa Tereza D’ávila como partida para falar do Outro Gozo que não é aquele das bordas pulsionais do corpo, ligado ao falo. Para Lacan, esses sujeitos “experimentam a ideia de que deve haver um gozo que esteja mais além”; ele conclui: “É isto que chamamos os místicos”.

Este romance documental também nos remete diretamente ao texto de Miller “A Psicanálise e a Ordem pública”, na revista Curinga n° 13, que com fina ironia escancara a cisão entre a abordagem da loucura na Saúde Mental na psiquiatria e na psicanálise.

Ora se o que especifica o ser humano é a linguagem, é habitar a linguagem; e a linguagem é um órgão, órgão porque têm uma função, uma função que é determinante. Isto é: ela determina o “ser”, mesmo antes que ela o encontre, assim como nos ensina Lacan, e, ainda mais, é só ela que pode ligar, de alguma maneira, o “ser” ao seu corpo. Sendo que esse órgão, a linguagem, não o é sem os demais órgãos. Como poderia, então, esta tese de Lacan se encontrar com a definição de “Saúde” para a Organização Mundial de Saúde (OMS) definida como o silêncio dos órgãos, sendo que ao contrário disso para a psicanálise é no encontro com a linguagem que algo não cessará de não se inscrever causando barulho no órgão da linguagem, e nos corpos.

[1] CLÉMENT, Catherine: KAKAR, Sudhir; tradução de Renato Aguiar; Madeleine sob tortura; In:  A Louca e o Santo;  p. 70 – Rio de Janeiro,  Editora: Relume- Dumará, 1997.
[2] CLÉMENT, Catherine: KAKAR,Sudhir; tradução de Renato Aguiar; Ramakrishna  e a experiência mística; In:  A Louca e o Santo;  p.113. Rio de Janeiro,  Editora: Relume Dumará, 1997.
[3] CLÉMENT, Catherine: KAKAR, Sudhir; tradução de Renato Aguiar; Bode e Cisne, In:  A Louca e o Santo, p.15 – Rio de Janeiro, Editora: Relume Dumará, 1997.
[4] MILLER, J. A Invenção Psicótica, In Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, nº 36, p.8 ; Maio 2003, Edição Eolia.
[5] MILLER, J. A Invenção Psicótica, In Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, nº 36, p.11; maio 2003, Edição Eolia.
[6] CLÉMENT, Catherine: KAKAR,Sudhir; tradução de Renato Aguiar; O azar de Madaleine, In: O bode A Louca e o Santo;  p.95. Rio de Janeiro,  Editora: Relume Dumará, 1997.
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