#04 - SETEMBRO 2024
ARRANCAR O OBSESSIVO DO DOMÍNIO DO OLHAR1
Jésus Santiago
Analista Membro da Escola (AME)
pela Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
E-mail: jesussan.bhe@terra.com.br
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Não é nada seguro que a neurose histérica exista, mas há certamente uma neurose que existe, é o que se denomina neurose obsessiva (LACAN, 1979). Lacan pôde fazer esta declaração, em 1978, durante o Congresso da Escola Freudiana de Paris, sobre a questão da transmissão em psicanálise. É certo que essa questão remete à concepção psicanalítica dos discursos; visto que sob esse ponto vista, não somos filhos dos pais, tampouco de Deus, “somos filhos dos discursos” (LACAN, 1971-72/2012, p. 226). Se a histeria deixa de existir como neurose, ela torna-se discurso. A histeria deixa de ser neurose desde o momento em que perde o que outrora lhe era inerente, isto é, esse verdadeiro salto do mental no somático próprio do sintoma conversivo. A obsessão, por sua vez, existe enquanto neurose, pois o pensamento lhe é suficiente. O sintoma obsessivo – afirma Lacan (1973/2003, p. 511), em “Televisão” – é “pensamento com o que a alma fica embaraçada e não sabe o que fazer”. A neurose obsessiva existe porque é a neurose ideal. É ideal porque é feita de ideias que, frequentemente, aparecem sob o modo de sacrilégios, injúrias, inclusive ideias escatológicas,[2] assassinas, que, no fundo, embaraçam o obsessivo e ameaçam apodrecer sua existência.
Delenda, a estratégia obsessiva
O que domina o obsessivo, com essa suficiência do pensamento, é a sua dependência do Outro que, no limite, ele visa destruir, ao mesmo tempo em que se dedica a lhe dar sustentação, na medida em que o Outro é o suporte mesmo de seu desejo de destruição. Assim, no tocante ao desejo, a política do sintoma no obsessivo – considerando que o inconsciente é a política – é colocar delenda[3] no seu horizonte, ainda que seu desejo de destruição se veja interditado pelo Outro. Falar da política do sintoma, nesse caso, é concebê-lo como uma “estratégia” (LACAN, 1957/1998, p. 454) inerente à neurose obsessiva, aquela que inspira o combate do pensamento para lidar com o enigma da origem, do destino, podendo responder à sua questão subjetiva por excelência, a saber: a questão da existência (GAZZOLA, 2002, p. 174).
Como constatamos com o fragmento clínico relatado durante o Parlamento de Montpellier (MILLER , 2011) pelo psicanalista francês Augustin Ménard (2020, p. 87), o obsessivo acredita ingenuamente nos objetos da realidade que o cercam e acredita ainda que, através desse Outro, poderá encontrar uma resposta para o enigma da existência. Por meio do pensamento, considerado como matéria-prima de seu sintoma, sua estratégia é levar adiante o programa de gozo, com o qual supõe lidar melhor com os objetos de sua realidade que acredita perceber. Porém, ele desconhece que o olhar com o qual capta esses elementos de sua realidade que compõem o campo do Outro apenas se faz através da janela do fantasma. Ou seja, as consequências que pode retirar desses dados e fatos de sua realidade são vistas e guiadas pela configuração de sua janela fantasmática. É por meio da configuração particular do fantasma que se pode demonstrar de que modo a economia libidinal do obsessivo se apresenta sob o império do objeto a olhar.
Passemos agora ao relato do caso que foi objeto de discussão em Montpellier, com o intuito de esclarecer esse ponto capital de aplicação da clínica do sinthoma à neurose obsessiva: “é particularmente difícil arrancar o obsessivo dessa ascendência do olhar” (LACAN, 1975-76/2007, p. 19). De início, a demanda do tratamento analítico se justifica por uma angústia que inquieta e paralisa o paciente, angústia concernente à sua vida profissional. De fato, ele “teme ser punido por seus superiores por uma falha no trabalho” ainda que, no tocante ao seu desempenho, “ele se sobressai muito bem” (MENARD, 2020, p. 87). Como disse antes, a neurose obsessiva se caracteriza pela potência do gozo do pensamento em gerar embaraço, a ponto de o sujeito ficar sem saber o que fazer. A esse respeito, circunscreve-se um aspecto crucial para a elucidação do caso, pois ele testemunha que “vive constantemente sob o olhar de um Outro que o julga, e que sempre age conforme o ideal que lhe serve de guia na vida e que lhe foi transmitido pelo pai” (MENARD, 2020, p. 87). Como é típico das obsessões, “seus pensamentos se impõem contra a sua vontade e o levam a fazer esforços constantes para afastá-los e retirá-los por meio de um diálogo interior exaustivo” (MENARD, 2020, p. 88). Nesses momentos, “o domínio habitual sobre as coisas por meio do pensamento se encontra bastante enfraquecido” (MENARD, 2020, p. 88).
Outro aspecto importante para a discussão sobre a função do olhar na neurose obsessiva se refere a quando o sujeito em questão busca em sua memória um evento incestuoso da primeira infância, no qual impera a satisfação do pulsão do olhar. Apesar de não se mostrar afetado pelo relato desse momento de sua infância, “ele o isola muito bem, inclusive, destacando os seus sentimentos agressivos” (MENARD, 2020, p. 88). Freud (1909/2022, p. 425), no caso sobre o Homem dos Ratos diz ser “quase regular” na vida dos obsessivos a “emergência precoce da pulsão sexual do olhar [Schautrieb]” associada à “pulsão de saber [Wiβtrieb]”. Segundo ele, o surgimento da neurose obsessiva implica sempre a presença da satisfação do olhar como fator que favorece “a regressão do agir para o pensar” (FREUD, 1909/2022, p. 425). Com efeito, o componente escópico da pulsão é fundamental não apenas com relação à formação do sintoma, mas, também, com o que frequentemente se deduz de seus impasses transferenciais que remetem à construção particular do fantasma na neurose obsessiva.[4] Como se frisou antes, “sua demanda de tratamento é fazer desaparecer a angústia e sua esperança é recuperar sua capacidade em manter as coisas sob seu controle”, mesmo porque – diz o paciente – “tudo [no pensamento] pode ser explicado”. Em face dessa esperança de recuperar sua condição de domínio, sobrevém o falicismo do sujeito obsessivo expresso pelas fantasias de onipotência e ubiquidade que também podem se exprimir em seus sonhos”. (MENARD, 2020, p. 89).
A propósito do fantasma nesse sujeito obsessivo, chama a atenção o emprego, por parte de seu analista, da figura da jaula que, como se sabe, é algumas vezes referida, no ensino de Lacan (LACAN, 1957/1998, p. 454), relacionada ao “gozo de um espetáculo” oferecido pelo personagem do “domador” que, nela, se encontra aprisionado. Seu intuito é mostrar a estratégia do obsessivo para manter-se à distância do desejo que, em seu fantasma, se traduz por domar as feras do real (LACAN, 1957/1998, p. 453). Assim, o obsessivo vive trancado na “jaula de seu narcisismo” – diz Ménard –, tentando a todo custo dar conta das feras do real e, por essa via, aceita ser “prisioneiro de seu sonho de unidade sustentado por seu ideal” (MENARD, 2020, p. 89).
Desalojar a ascendência do olhar
Em sua concepção de um mundo sem falhas é o que permanentemente pressiona o obsessivo a confrontar-se consigo próprio, sob o olhar do Outro – público – como testemunho, ao qual ele endereça suas performances fálicas, sem, com isso, obter a menor satisfação. Importa observar de que o sujeito “afasta de sua vida sexual tudo aquilo que ameaça colocar em risco sua bolha narcísica, deixando de lado o seu encontro precoce com o sexo e seu excesso de gozo”. Somente a angústia, signo da força incontrolável de suas obsessões e do sofrimento ocasionado pelo isolamento, é capaz de minar suas defesas fálicas e, assim, obrigar a buscar um tratamento. É o que provoca a tentação de interromper a análise quando o efeito terapêutico se faz presente.
Seu analista considera que o tratamento lhe trouxe diversos efeitos terapêuticos – a angústia despareceu, os ideais e as identificações se afrouxaram e, finalmente, a agressividade reconhecida – e isso lhe foi suficiente. No entanto, para que a experiência do inconsciente possa ir mais longe, se faz necessário tocar no ponto em que o domínio da pulsão escópica sobrepuja as outras experiências pulsionais: anal, oral, vocal e fálica. Ou seja, permitir ao sujeito passar pelos diversos objetos pulsionais, de maneira a opor essa diversidade dos objetos à pregnância do objeto olhar. Ao contrário da visão freudiana da neurose obsessiva, não é com relação ao objeto anal que se corre o risco do gozo se fixar. Assim, para enfrentar essa difícil tarefa que é arrancar o obsessivo da ascendência do olhar, o analista não pode visá-lo diretamente. Para Ménard, o meio indicado é contar com o equívoco, considerando que a palavra equívoco (MENARD, 2020, p. 91)[5] contém a voz e nos indica que é esse objeto que deve desalojar o olhar, arrancando-lhe. Arrancar supõe uma ação violenta que surpreende. Suas modalidades são múltiplas, mas sempre singulares. Isso pode acontecer pela pressão, tal como Lacan pôde exercê-la por meio das sessões, frequentemente curtas; seja pela forte entonação apoiando um significante; ou, ainda, por uma simples jaculação vindo percutir o corpo.
Impor o impasse no Outro
Pergunto-me se a solução proposta, por Ménard, de que é preciso fazer o sujeito passar pelas experiências com os diversos objetos pulsionais, ou mesmo desalojar o objeto olhar pelo objeto voz, é suficiente. Melhor dizendo, penso que ele enfoca mais o como fazer e menos as razões que explicam por que o olhar ocupa esse lugar preponderante na economia libidinal do obsessivo. Chama-me a atenção a interpretação que faz Miller (2011), durante o Parlamento de Montpellier, por meio de um enigma que repercute no que me parece ser o fator o essencial desse domínio do olhar, no obsessivo, que é a coalescência entre o ideal (S1) e o objeto (a). A esse propósito, ele agrega um breve episódio que Derrida faz chegar até o psicanalista Lacan, no transcurso de um jantar, na casa de seu concunhado Jean Piel. Segundo a versão de Derrida, relatada em sua própria biografia:
À noite, quando Pierre, seu filho, começava a dormir na presença de sua mãe Marguerite, o filho pergunta ao pai porque estava olhando para ele.
– Porque você é lindo.
A criança reagiu imediatamente, afirmando que o elogio lhe dava vontade de morrer.
Um pouco preocupado, Derrida procurou desvendar aquela história:
– Não gosto de mim, diz a criança.
– E desde quando?
Marguerite, então, o pegou no colo, e disse-lhe:
– Não se preocupe, nós te amamos muito.
Em seguida, Pierre caiu na risada:
– Não, nada disso é verdade, sou um trapaceiro de vida. (BENOÎT, 2013, p. 215)
Após o relato do episódio, Lacan não se mexe. Passado um tempo, Derrida fica estupefato ao encontrar o episódio pela pena de seu interlocutor numa conferência pronunciada na Itália, em dezembro de 1967. Eis a interpretação que faz Lacan (1967/2003, p. 334):
Eu sou um trapaceiro de vida, diz um garoto de quatro anos, enroscando-se no colo de sua genitora, diante do pai que acabara de responder: “Você é lindo” à sua pergunta: “Por que você está me olhando?”. E o pai não enxerga nisso (apesar de o menino, no intervalo, o haver tapeado com a ideia de ter perdido o gosto por si mesmo desde o dia que falou) o impasse que ele mesmo tenta impor no Outro, ao se fazer de morto. Cabe ao pai que me contou isso ouvir-me aqui, ou não.
É bem provável que esse episódio em que o pai olha fascinado para a beleza da criança seja uma via em condições de esclarecer o que vem a ser a fixação do obsessivo com a satisfação pulsional do olhar. Antes de tudo, é preciso considerar que o fantasma do obsessivo, com seus dois flancos fundamentais, se alicerça no fazer-se de morto frente ao desejo do Outro que, no fundo, é seu próprio desejo. Com efeito, o fantasma obsessivo compõe-se, de um lado, pelo sujeito enquanto o Outro barrado que, de alguma forma, coincide com os dados e fatos da realidade imediata do sujeito; e, de outro, o objeto que se apresenta sob o modo de uma série de objetos falicizados.
A/ <> ϕ (a’, a’’, a’’’ …)
Quando o pai, fascinado pela beleza do filho, é surpreendido pela reação da criança de ter perdido o gosto pela vida, ele se angustia e se faz de morto. A mãe, por sua vez, tenta apaziguar a situação, manifestando-se: “mas, nós te amamos tanto, meu filho”. A interpretação de Lacan é que o objeto olhar é uma via preferencial do obsessivo para impor o impasse no Outro, ou seja, é com o olhar do pai falicizando o objeto que o obsessivo tenta a todo custo fazer valer uma realidade que não seja falha. Trata-se de impor o impasse no Outro, na medida em que este não pode estar, de modo algum, dividido, isto é, atravessado pelo desejo e pelo gozo.
Referências
BARRETO, C. S. A neurose obsessiva e o olhar: quando olhar serve para não ver. Mestrado (Estudos Psicanalíticos), Departamento de Psicologia, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, 2017.
BENOÎT, P. Derrida, biografia, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2013GAZZOLA, L. R. Estratégias na neurose obsessiva, Zahar, Rio de Janeiro, 2002, p. 174.
FREUD, S. Observações sobre um caso de neurose obsessiva (Homem dos Ratos). In: Histórias clínicas: cinco casos paradigmáticos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. (Trabalho original publicado em 1909).
LACAN, J. Lettres de l’École freudienne de Paris nº 25, p. 219, junho, 1979.
LACAN, J. A psicanálise e seu ensino. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 734-745. (Trabalho original publicado em 1957).
LACAN, J. O engano do sujeito-suposto-saber. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 329-335. (Trabalho original proferido em 1967)
LACAN, J. Televisão. In: Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 508-543. (Trabalho original publicado em 1973).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
LACAN, J. O Seminário, livro 19: …ou pior. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012. (Trabalho original proferido em 1971-72).
MENARD, A. Les promesses de l’impossible. Nîmes, França: Champ Social, 2020.
MILLER, J.-A. Autour du Séminaire XXIII/Le Sinthome. In: Conversation Parlement de l’UFORCA, Montpellier, 2011. (Texto inédito).
SANTIAGO, J. A religião é sintoma. In: Zadig Doces e Bárbaros, 2024. Disponível em: https://medium.com/@zadigdocesebarbaros/a-religi%C3%A3o-%C3%A9-sintoma-76cded813155. Acesso em: 03 set. 2024.
[1] Este texto será publicado na próxima revista Almanaque do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais.
[2] Ver, a esse respeito, o quanto o sintoma obsessivo se aproxima da religião. Cf.: SANTIAGO, 2024.
[3] “Carthago delenda est”: era com essa frase que o senador romano Catão terminava seus discursos no Senado. Significa, simplesmente: “Cartago [inimiga de Roma] deve ser destruída”.
[4] Ver, a esse respeito: BARRETO, C. S. A neurose obsessiva e o olhar: quando olhar serve para não ver. Mestrado (Estudos Psicanalíticos), Departamento de Psicologia, UFMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, 2017.
[5] Etimologia da palavra “equívoco”, que vem do latim “aequivocus”, composta de “aequus” (“igual”) e “vox” (“voz”).