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Alguns comentários sobre: Falar sobre o que não existe. Do gozo do sentido às bricolagens possíveis.

Por: Maria Silvia Garcia Fernandez Hanna

Em primeiro lugar meus agradecimentos a Louise Lulhier e Nohemi Brown pelo convite de estar aqui, hoje com os colegas da EBP-Seção Sul e outros que nos acompanham, para comentar o argumento do tema da II jornada da EBP-Seção Sul.

Creio que foi o Unicórnio que me trouxe até aqui. Ser fantástico[1] citado por Louise em seu texto a partir da leitura do curso de J. A Miller: O ser e o Um. O unicórnio, assim como todos os seres que conhecemos são seres de linguagem.

Minha relação com os unicórnios até agora tem sido bastante restrita, mas pode ser que aumente a partir de hoje. Na semana passada tive a oportunidade de comentar o caso do Sonho do Unicórnio de Serge Leclaire, junto com outros colegas, no Seminário Clínico da EBP-Seção Rio.  No caso citado o analisante era obcecado por unicórnios e durante sua análise foi produzida uma sequência de palavras que ao reduzi-la se transformou em Li-corne, as letras impregnadas de gozo. Lacan, no seminário livro 11, sugere a leitura desse caso como uma ilustração da interpretação que vai além do sentido.

O título da jornada indica que a dimensão daquilo que no existe emerge no campo da linguagem e da fala. E seu subtítulo, propõe uma orientação que alude ao trabalho analítico, no qual se produz um movimento que vai do gozo do sentido às bricolagens possíveis. Esse passo é uma operação que inclui necessariamente o analista.

O argumento apresentado é uma proposta de trabalho para a próxima jornada que circunscreve as elaborações do ensino de J. Lacan (1971-1973), elucidadas por J. A Miller em seu curso: O ser e o Um. Tomo essa proposta como uma aposta de elaboração dos elementos que se encontram nessa abordagem teórica.

Lembro que J. Lacan disse que seu ensino era capaz de dar consistência ao discurso analítico, o que foi traduzido posteriormente por J.-A Miller; “…a elucubração faz parte da experiência.”[2]

Nesse sentido temos o desafio de dizer o que muda na experiência psicanalítica orientada pelo axioma que toma o gozo como uma evidência, como um ponto de partida que instaura a não relação entre o gozo e o Outro.  Esse axioma apresenta o Um totalmente separado do Outro, do qual se desprende a fórmula: não há relação sexual.[3]

Mas como entra o Um no mundo, no corpo? J. Lacan responde que o significante introduz o Um no mundo; o encarna (encorps), nesse contexto, o significante é elevado à causa de gozo[4].

Em relação a isso, sugiro revisitar as três primeiras hipóteses de Parmênides retomadas pelos neoplatônicos, junto com J. -A Miller, que oferecem a possibilidade de entender a relação entre o Um e o ser em cada hipótese, e a partir delas, situar os matemas lacanianos $, S1, S2 e o objeto a.[5]

Cabe dizer que o argumento oferece uma excelente costura entre o ensino e a prática da psicanálise, demostrando por um lado, que a elucubração faz parte da experiência[6], e por outro, abrindo algumas linhas de pesquisa possíveis.  Nesse sentido interrogo; o que traz de novo a elaboração do Um do gozo?

Essa pergunta acompanha a direção apontada no título e, também na escolha dos termos elencados no texto que são: a associação livre, a interpretação, o sinthoma, o corpo, desembocando por fim, no tema da invenção-bricolagem.

Extraio do argumento que a associação livre, isto é, “dizer tudo o que vem à cabeça” (regra fundamental da psicanálise) é o caminho, onde a fala produz as diferentes modalidades de existência, tal qual foram trabalhadas por Lacan em relação “ao que cessa” e “ao não para” de se escrever. E é o analista, a partir da atenção flutuante, que intervém na fala do analisante, lendo o significante (separado de sua articulação) e isolando seu valor de letra encarnada no corpo que faz gozar.

Outro ponto a ressaltar é sobre como a interpretação se livra das amarras do sentido para dar lugar ao não sense, passagem fundamental, que girará entorno do impossível de dizer, promovendo algo inédito, surpreendente para o próprio sujeito.  Assim essa concepção de interpretação faz ressoar as letras agarradas no corpo, que não se articulam com nada e que indicam o gozo do Um.

Ao comentar o tópico sobre o sintoma, cabe lembrar que Freud elaborou duas definições para conceber o sintoma, a primeira diz que o sintoma é uma realização de desejo inconsciente (campo do desejo), e a segunda que o considera como uma satisfação pulsional (pulsão).

Já Lacan retoma, ao longo de seu ensino, o sintoma como uma formação do inconsciente, como uma mensagem que se articula ao Outro, portanto interpretável. Posteriormente introduz o sinthoma com um neologismo que aloja a letra h indicando que a letra se infiltra na palavra. Assim o sinthoma localiza uma forma de gozar do corpo, disjunta do Outro, índice da presença do Um e da ausência da relação sexual.[7]

As duas definições de Freud e de Lacan abordam os campos do desejo e do gozo presentes na fala. Mas a elaboração de Lacan parte da premissa do Um do gozo, desligado da estrutura, do campo do Outro, e, é justamente isso, o que permite ir além das elaborações sobre a pulsão em Freud.

Mas como ordenar as duas abordagens do sintoma em J. Lacan. Elas se substituem, se complementam, que relação propor? A princípio penso que não se trata de substituir uma pela outra e, sim, de poder articulá-las. Nesse sentido, indago se é possível considerar que sinthoma está presente no sintoma, assim como a letra esta presente no significante?[8]

Partilho da ideia de que a delimitação da letra presente no gozo do sinthoma é aquilo que toca o corpo que está além do corpo narcísico, tal como, é apontado na proposta para a jornada.

Entendo que todas essas considerações abrem o trabalho analítico para um além do sintoma, um além do sentido, um além do corpo narcísico, exigindo uma nova topologia. Esse movimento de ir além vai produzindo restos, pedaços, com os quais, em algum momento poderá surgir algo novo, que ganhe o estatuto de invenção para o analisante. Ali se encontra a aproximação entre a bricolagem e a invenção. Podem se aproximar, mas é necessário examiná-las mais de perto para tecer relações possíveis ou impossíveis. É importante continuar a trabalhar para extrair mais consequências para a prática do analista, seja aonde ela for, das construções que tomam como ponto de partida: Há gozo.

Obrigada.


[1] O unicórnio é um ser fantástico, considerado símbolo da pureza, da castidade e da força. Ele aparece nas narrativas medievais como um animal extremamente dócil e próximo das donzelas virgens.
[2] Miller, J.- A. Los signos del goce. Editora Paidos. Buenos Aires. 1998. P. 352.
[3] Miller, J. A. Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana online. Nova série. Ano III. Março 2012.
[4] Lacan. J. Seminário livro 20:mais ainda. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed. 2008.
[5] Miller, J.-A. Los signos del goce. Buenos Aires. Paidós. 1998.
[6] Idem.
[7] Miller. J.-A Os seis paradigmas do gozo. In: Opção Lacaniana online. Nova Série   Ano III março 2012
[8] Jimenez, S. No cinema com Lacan. Rio de janeiro. Ponteio.2014.
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