Juliana Rego Silva[1] Não existe Outro do Outro, não existe a verdade sobre a verdade.…
A transferência ata o amor ao real
Integrantes: Eneida Medeiros Santos (Mais-Um); Rafaela Maester e Verônica Montenegro.
Eneida Medeiros Santos (EBP/AMP)
O amor está ligado ao saber. Dirige-se ao Outro, interrogando-o sobre o que ele pode nos dar e o que ele tem para nos responder. Para Freud, a transferência analítica, que se manifesta pelas vias do amor, é um fato, que coloca em funcionamento todo o dispositivo do significante e cria uma trama ficcional na análise, produzindo efeitos de verdade e de desejo no sujeito. É por meio dessa ficção que supomos saber ao analista, e portanto, o amamos. O saber, então, encontra-se, na análise, velado pelo amor.
Se o advento de novos tipos de laços, novas subjetividades, colocam em xeque as ideias de saber, verdade e desejo, porque seguimos apostando no laço de amor transferencial? O amor de transferência pode ser uma ferramenta que orienta o analista no real sem lei de nossa época? Da mesma forma, quando em uma análise, o amor transferencial cede espaço à transferência negativa, produzindo uma dessuposição de saber do analisante ao analista, esse amor pode ser reeditado, e por quê?
São questões que me colocaram a trabalho nesse cartel, cujas respostas foram surgindo deixando-me guiar pelos textos de Lacan, desde o trabalho que ele faz em torno do “Banquete” de Platão (1). O que primeiramente surgiu como pergunta, passou a ser o eixo da pesquisa: a transferência é uma forma de atar o amor ao real. J. A. Miller, em seu texto “CST” (2) diz que no começo de uma análise está a transferência, não a demanda de análise. Está a pré-interpretação que o analisante dá de seu sintoma e o chamado ao SsS que possa dar conta do sem sentido que se produziu pelo encontro com o real para este sujeito. De início há, portanto, o amor.
Se no “Banquete”, Lacan introduz a questão do amor de transferência como um fenômeno inconsciente que aponta para a busca do objeto do desejo no objeto amado, instaurando a falta que é própria do desejo e a significação do amor, aí mesmo Lacan já assinala que no fenômeno amoroso, cada passo que se dá esbarra-se na discordância, refletindo aí uma topologia fundamental do amor. O próprio Banquete já exibia os embaraços e dificuldades presentes quando cada comensal tentava sustentar a ideia do amor.
O amor é um ponto de suspensão da não-relação sexual. A partir daquilo que não para de não se inscrever, o fenômeno amoroso faz parar. Esse encontro contingencial, que sabemos ser sempre faltoso, é reeditado na análise e sua repetição aponta para uma face outra da transferência, enraizada no significante da transferência, os modos de gozo do sujeito.
Assim, para buscar o amor nos fenômenos transferenciais é preciso adentrar nos paradoxos do gozo. É preciso não situá-lo na definição imaginária e narcísica do amor e tão pouco na identificação simbólica, como mera reedição e repetição significante, pois ambos fracassam em resolver o problema do gozo. Interpretar a transferência imaginária, como um obstáculo é um “erro de rota” na clínica analítica, que pouco ou nada contribui para a direção do tratamento.
O campo da transferência que nos interessa pode ser adentrado se distinguimos no amor duas facetas da remissão ao Outro, uma simbólica/imaginária, como falamos acima e a outra real, representada pela barradura do Outro. É o Outro que indica os caminhos do gozo para um sujeito, pois, por meio da barra que recai sobre ele, o objeto a, que particulariza o gozo de cada um, surge e vem com isso preencher essa falta. É portanto a invenção de cada um, que é feita no nível do objeto a, que confere ao amor transferencial o estatuto de novo do amor, aparecendo aí como uma solução para o vazio do Outro e para o real da não existência da relação sexual.
“Cada vez que tem propriamente amor, podemos buscar a presença, a instância do Outro barrado (A/), ou seja, privado do que dá”(3) Isso situa, segundo Miller, o amor lacaniano, em contraposição ao amor freudiano, do lado da invenção. “[…] A boa nova lacaniana é que existem novos amores possíveis” (4). O amor como invenção é portanto uma questão ética e política, um modo de dirigir-se ao objeto a partir do Outro do significante, num esforço de dar um nome próprio a esse a. Numa análise, é preciso procurar “por onde vai o gozo, por onde ele vai na ordem social, no vínculo social que, em nome do amor, em nome do interesse da humanidade ou da nação ou da seita, comanda o sacrifício do gozo pulsional, aonde vai o mais-de-gozar, o qual é também uma questão política” e ética.(5)
Será assim que o amor de transferência pode ser uma ferramenta que orienta o analista no real sem lei de nossa época? Será assim também que ele pode ser reeditado na análise, via ato do analista, transformando-se numa potente ferramenta que faz frente à rotina do significante? Se no final da análise se descobre que o Outro é barrado, quer dizer, que não há Outro do Outro, isso significa inventar uma forma de amor que vá além da repetição, preservando a contingência do encontro do o objeto a no campo de um Outro que se sabe barrado.