A dessemelhança entre os iguais: psicanálise e democracia Fernanda Baptista Fundado numa questão que subverte,…
A pura ausência do Um
Eneida Medeiros Santos (EBP/AMP)
Agradeço a Nohemí pelo convite para comentar o argumento escrito por Louise e vou partir de três questões que estão de alguma forma contidas no argumento: a questão do ser e da existência, desde a perspectiva lacaniana, e a da transferência.
Para tratar da questão do ser, utilizei um texto de Carmen G. Táboas, traduzido por mim em 2014 para o Scilicet do IX Congresso da AMP intitulado “Um real para o século XXI”.
Carmen fala de Santo Anselmo de Canterbury, teólogo e filósofo medieval italiano que, em sua tentativa de provar a existência de Deus, criou um argumento ontológico afirmando existir realmente um ser supremo. Ele diz que as coisas do mundo têm uma causa, mas há um ser que não, ele é a causa de si mesmo. Então, para ele, Deus deve necessariamente existir, uma vez que não podemos pensar nele senão como um ser necessariamente existente. Então, prossegue Táboas, crê-se no ser, o Entissimun. Esse é um argumento ontológico por excelência.[1]
Fazendo um contraponto, podemos tomar o cogito cartesiano como aquele que instaura um ser a partir do pensamento. Duvido da verdade das coisas, mas porque penso, eu sou. Confirma-se o ser pelo pensamento. Lacan conjuga isso com o verbo serpensar: eu serpenso, tu serpensas, ele serpensa etc.
A formulação do cogito para Lacan é problemática. O pensamento também é impotente para tocar a existência, pois ele é imaginário. Por outro lado, a dúvida metódica produz uma reviravolta, um ato de conclusão que sustenta a existência de uma verdade e esse é o ponto interessante para pensar essa passagem para além da ontologia.
Graciela Brodsky afirma que a dúvida de Descartes consiste em se perguntar sobre que tipo de certeza pode ter um sujeito e de onde ele extrai essa certeza[2]. Para ela, “naturalmente” o sujeito faz uma opção preferencial pelo ser e não pelo pensar. Ao contrário, a operação da verdade que se faz numa análise é escolher a opção rechaçada, i. e., pensar e não ser. Ninguém prefere pensar para não ser, se não é à condição de estar em transferência, significando haver aí uma mudança no estatuto do ser no início de uma análise. E, ao final, o que se espera é uma certeza sobre o ser. Espera-se uma resposta que não possa mais ser posta em dúvida.
Brodsky diz que a psicanálise deve tanto modificar o estatuto do sujeito como falta-em-ser, quanto dar lugar a opção sou e não penso, porém fora do narcisismo. Um sou sem o suporte do fantasma e das identificações. Um sou via sintoma, abrindo então um acesso à existência do gozo, ao invés da consistência ontológica. Ao contrário do termo “ontologia”, quando Lacan utiliza o termo “ôntica” em seu ensino, ele se refere às questões do gozo e de existência e não do ser. E é por isso que ele pode afirmar que Deus é o real e é essa também a vertente real do gozo feminino, o qual, por não ser fálico, ex-siste ao sujeito, não lhe devolvendo a consistência imaginária de seu ser.
Abrindo mais a questão, podemos ir ao Seminário 9, A Identificação[3], pois Lacan trata ali da experiência mais primitiva de presença e de pertencimento no mundo como sendo uma identificação simbólica radical do sujeito a um significante. Uma experiência primária de identificação que se estabelece e se repete, i. e., cria as bases para a relação do sujeito com o seu ser “o que ele é”, e com o que repete na perseveração de seu ser, “o que ele ainda é”. O traço unário é o traço mais simples, o traço único que dá suporte ao significante.
A primeira forma do Um, portanto, é a da repetição significante, a que aparece no seminário supracitado. É desse modo a abordagem inicial feita por Lacan do Um, como traço unário, como primeira inscrição do significante. Se pensarmos o traço unário como aquilo que inaugura a cadeia de repetições para um sujeito – e veremos mais adiante no ensino de Lacan o que se repete como sendo outra coisa -, fundando o ser, precisamos colocar à prova também a questão da predicação. O ser é o que não pode ser predicado e esta impossibilidade é tal que mesmo essa frase, ela mesma, repete a sua própria contradição e vacuidade: o ser é impredicado.
François Récanati[4] nos mostra em um texto muito esclarecedor que entre o objeto e o representante há um buraco fazendo com que os dois não sejam engancháveis em sua relação. Entretanto esse buraco é algo que insiste e funda uma “verdadeira” repetição, a repetição da impossibilidade ou a repetição do buraco. Há uma operação de passagem do zero ao Um, mas o Um sempre faz uma inscrição inadequada com relação ao zero, ficando o interpretante – o dois – sempre indeterminado, impossível.
Basta que a repetição se manifeste como impossível para ela se tornar possível e efetiva.[5] Então, seguindo seu raciocínio, essa impossibilidade inaugural da repetição funda a série das repetições da impossibilidade. “[…] a repetição de algo que não se inscreve porque é sempre outra coisa quer dizer que no momento em que esse algo se inscreve, cessa de existir, pelo fato mesmo dessa inscrição.”[6] Essa disjunção é para Récanati aquilo que acontece entre o ser e o predicado, “os predicados não são predicados senão desta ausência”.[7]
A partir disso, Lacan afirmará sobre o nomear ser um ato único, esse encontro radical e primeiro com o furo, sem predicações. É saltar uma fronteira, como o atravessamento do Rubicão por Júlio César. Nomear parte do impossível, da ex-sistência. Entre o zero e o Um há um buraco, mas esse buraco se desvanece quando aparece o dois, ou seja, a significação. É por isso que Lacan diz que contamos a partir do dois. O dois é a repetição desse encontro malogrado entre o zero e o Um
O “A = A” que Lacan não se cansa de nos mostrar no Seminário 9 é uma impossibilidade, a impossível identidade. “A” não tem substância porque não se sustenta por si mesmo. Há um fosso radical entre o zero e o Um e esse fosso se inscreve no Um mesmo, no significante que o nomeia. O dois, ou o sentido, produzem-se às custas do “desconhecimento, do rechaço, do desmentido ou da denegação do Um. A interpretação analítica faz surgir o Um que estava em estado potencial no zero, como a estátua já existe potencialmente no próprio pedaço de mármore.[8]
A série dos números só é acessível a partir do número dois pois, antes disso, não há a possibilidade de termos um número que seja a soma dos outros precedentes. Um número só é acessível se ele for a soma de outros. Por exemplo, o número quatro é a soma de 3+1, o três, de 2+1 etc. O Um é esse primeiro elemento que vai se somar a cada outro número que aparecer na série. O problema está entre o zero e o Um, já que qualquer número somado de zero tem como resultado ele mesmo. Há um impossível aí. O Um é esse real que se repete na série.
O que Lacan diz com isso? Que o impossível se repete desde o início. É isso que falta na série, justamente o que se escreve, i. e., o vazio, o real.
Então “Há Um”, mas esse “há” é pura ausência, um ponto centrado, mas ausente de ser, remetendo-nos à existência e produzindo efeitos. É quando o Um do significante se inscreve como escrita no corpo que podemos ler algo sobre o ser, um ser de gozo.
Voltando o olhar apara a clínica, uma análise só se inicia quando se constitui o significante da transferência, significante qualquer, sobre o qual o analista nada sabe, pois somente vai topar com ele no encontro com o analisante. Como há horror ao saber, ama-se o saber do Outro. Daí que o SsS seja a equivocação essencial. O analista sustenta esse ato de fé no SsS, por meio do qual o analisante se coloca à trabalho.[9]
Para concluir, podemos dizer que não há solução para o sujeito apaziguar-se definitivamente com seu ser porque seu ser é sempre um ser em falta. É o amor que restitui a ilusão de ser e restitui também Deus, como diz Lacan. O sujeito ama aquele que ele supõe um saber sobre essa perda e, com isso, crê resgatar sua autenticidade, seu ser. O Sujeito-suposto-Saber é esse artifício operando numa análise. Na verdade, Lacan diz que o SsS não é formação de artifício, mas de veia, quer dizer, desde que se fala, ele funciona. O sujeito crê que o analista sabe de sua perda de ser e que pode também, em alguma medida, gozar desse saber. Entretanto, “o hiato deixado pela perda da autenticidade do sujeito jamais chegará a ser recoberto”[10], condenando o sujeito ao infinito das identificações. No fim de uma análise, quando elas já não se sustentam, “a paz não vem selar prontamente essa metamorfose em que o parceiro [do sujeito, o SsS] se esvaece, por já não ser mais do que o saber vão de um ser que se furta”[11].
Referências
BRODSKY, Graciela. Fundamentos. El acto analítico. Buenos Aires: Cuadernos del Instituto Clínico de Buenos Aires, 2002.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 9: A Identificação (1961-1962). Inédito.
_______. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: Outros Escritos. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
MILLER, Jacques-Alain. Extimidad. Trad. de Nora A. González. Buenos Aires: Paidós, 2010.
_______. Percurso de Lacan. Trad. de Ari Roitman. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
RECANATI, François. Predicación y ordenación. Trad. de Ricardo Rodríguez Pontes. In: https://enelmargen.com/2015/09/20/predicacion-y-ordenacion-por-francois-recanati-intervencion-pronunciada-el-12-de-diciembre-de-1972-en-el-seminario-de-lacan/
TÁBOAS, Carmen González. Deus e o SsS. In: Um real para o século XXI. MACHADO, Ondina; RIBEIRO, Vera Lúcia Avellar (Org.). Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
[1] TÁBOAS, Carmen González. Deus e o SsS. In: Um real para o século XXI. MACHADO, Ondina; RIBEIRO, Vera Lúcia Avellar (Org.). Belo Horizonte: Scriptum, 2014. p. 116.
[2] BRODSKY, Graciela. Fundamentos. El acto analítico. Buenos Aires: Cuadernos del Instituto Clínico de Buenos Aires, 2002. p. 51.
[3] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 9: A Identificação (1961-1962). Inédito.
[4] RECANATI, François. Predicación y ordenación. Trad. de Ricardo Rodríguez Pontes. Disponível on-line.
[5] Ibid, p. 2.
[6] Ibid, p. 2.
[7] Ibid, p. 3.
[8] BRODSKY, op. cit., p. 10.
[9] MILLER, Jacques-Alain. Percurso de Lacan. Trad. de Ari Roitman. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. p. 86.
[10] MILLER, Jacques-Alain. Extimidad. Trad. de Nora A. González. Buenos Aires: Paidós, 2010. p. 27.
[11] LACAN, Jacques. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: Outros Escritos. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 260.