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A presença do analista na clínica com crianças.

Inês Seabra Abreu Rocha (EBP/AMP)

Desde o início da pandemia adotamos o modo de atendimento online também na clínica psicanalítica com crianças. Interrogamos acerca das questões trazidas por Lacan no Seminário 11, no capítulo intitulado “A presença do analista”. Testemunhamos a partir da experiência psicanalítica os modos de presença do analista e suas consequências no tratamento. Marie-Hélène Brousse nos diz que tempo e espaço são duas dimensões transcendentais da sensibilidade, segundo Kant, que estarão em questão no espaço analítico, mesmo no seu momento virtual. O tempo em jogo em uma análise não é o tempo cronológico, regido pelo discurso capitalista “time is money”, mas o tempo modalizado por Lacan como “tempo lógico”: instante de olhar, tempo de compreender e momento de concluir. A lógica do tempo perpassará a análise realizada também no modo online.

O espaço-tempo, vivido no modo online, nos coloca diversos impasses, mesmo levando em conta que a constituição do sujeito passe por um recurso especular. “É verdade que o sujeito, representado por um significante para outro significante, não recusa o virtual. Pode-se até dizer que o sujeito mesmo é só virtual.” Brousse ressalta que embora o virtual modifique o modo operatório dos objetos, não anula em nada seu poder em tanto que organizador de uma modalidade de gozo: “o corpo falante, expressão explosiva, depende em parte do Real. É o impossível do virtual”.

Assim, partimos deste ponto de impossível para dar lugar à contingência do encontro com o analista na clínica com crianças. A presença do analista nas diversas modalidades em que surge a transferência estará no cerne do tratamento analítico. Para Lacan, (Seminário 11, pag.121) a presença do analista é a própria manifestação do inconsciente que pode também se manifestar como uma recusa do inconsciente, dos efeitos da fala sobre o sujeito.

Portanto, o analista se fará presente como um lugar de endereçamento da fala do sujeito, no lugar de semblante do objeto a. No caso de Joana, a análise se inicia há dois anos no modo online, ela tinha então quatro anos. A questão dos objetos na clínica com crianças nos interpela e, como nos trouxe Brousse, os objetos organizam uma modalidade de gozo, e também o analista como objeto, onde a presença do analista proporciona ao sujeito a emergência da fala e do inconsciente.

Joana arruma seus objetos em uma mesinha e peço à mãe que deixe o telefone fixado em um lugar frente a ela. Durante muitas sessões, ela quis brincar de escolinha: “eu sou a professora”. Joana se assegura assim do seu saber, mas agora já está com seis anos e o problema mudou: ela não consegue aprender a ler. O sintoma que a trouxe ao tratamento foi falar embolado, não era possível compreendê-la. Uma intervenção da analista marca um momento da análise: “Quando você fala de forma compreensível, você está pelo quarto andando e se mexendo, quando está aqui sentada fala palavras incompreensíveis”. Um corte entre o gesto e as palavras, Joana silencia e depois diz: “- Só você mesmo para dizer essas coisas”. A presença do analista e sua interpretação se suportam na transferência, onde o saber é suposto quando o analista traumatiza o discurso comum. Ela passa a fazer as sessões mais quieta, e por vezes desliga o vídeo e fica em silêncio. Então quando desenha, peço a ela para escrever seu nome: ela já sabe.

– Então você sabe ler? Pergunta a analista.

– Você sabe que não sei ler! Ela grita como resposta.

– O que você não sabe ler? Pergunta a analista.

– Nada! Ela grita outra vez.

A analista pontua que ela sabe ler seu nome, então não é “nada”.

A relação do sujeito com sua falta-a-ser surge no significante “nada”. Ela havia feito em outra sessão um desenho onde mostrava seus pais carregando o bebê que nasceu e ela ao lado. Algo do saber escapa à Joana, diante do enigma do desejo do Outro, do desejo da mãe, ela se recusa a decifrar os signos e letras que compõem a linguagem, o código, o tesouro dos significantes.

Digo-lhe depois: “- Nada? Você pode escrever N-A-D-A”. Ela conhece as letras e acaba por escrever a palavra “nada”. Então digo: “agora você pode ler esta palavra”.

– Eu não sei ler, você está insistindo. Ela retruca nervosa.

– Ou você não está querendo ler? A analista indaga.

Algo do saber da criança é obstaculizado por seu próprio desejo: surge um sintoma que incomoda a mãe, que é professora, retirando-a do cuidado do seu novo bebê. Joana pode ganhar a atenção da mãe não aprendendo a ler. Como nos trouxe Lacan, “eu minto ou eu o engano”, a presença do analista faz surgir o equívoco que abre para o inconsciente, para o sujeito dividido por seu desejo. Nas próximas sessões, Joana está mais quieta e calada e ainda joga com o sumiço de sua imagem na tela. Ao final, fotografa os desenhos e me envia quando a sessão termina. Na outra sessão conversamos sobre os desenhos: Joana agora aprende a ler sobre o seu sintoma.


BIBLIOGRAFIA
Brousse, M-H. Crônica del malestar: extension del império de lo virtual, 2021.
https://www.hebdo-blog.fr/chronique-du-malaise-lepoque-de-la-montee-des-egos-2/
Lacan, J. O Seminário, livro 11 : Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
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