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A nova geografia da EBP e suas consequências:  Seção Sul

Louise Lhullier[1]
Arte: Marinela Goulart

No dia 14 de junho deste ano estive conversando com os colegas da Seção Leste-Oeste da EBP sobre a experiência da nova geografia no âmbito da Seção Sul e algo do que já me havia sido possível extrair daí. O convite que me fizeram me levou a organizar uma série de ideias sobre esse tema, que colocarei de maneira breve nesta nota para o nosso boletim. Espero que outras vozes possam se manifestar sobre o tema, neste espaço, sejam de membros, sejam de outros participantes de nossa nova Seção.

  1. Alguns antecedentes

Desde 2017, quando Miller publica e divulga amplamente pela internet seu texto Campo Freudiano: Ano Zero [Lacan Quotidien n. 718, de 11 de junho de 2017], a questão do aggiornamento democrático na Escola de Lacan entra em nossos debates e põe em movimento as instâncias, especialmente os Conselhos.

A partir de uma carta dirigida por Laura Freni a Miller, entra em pauta o tema do conflito entre a maioria e uma minoria dissidente como um problema de nossa democracia interna. Miller afirma que “de maneira geral […] em todo o Campo Freudiano encontramos o mesmo problema” e que a Escola tem dificuldade de intervir nesses conflitos, localizando tal dificuldade na própria estrutura das nossas Escolas. A partir daí, sugere que

Pode ser que tenha chegado o momento de reestudar os estatutos das Escolas do Campo Freudiano e introduzi-los a um aggiornamento democrático. A democracia, com efeito, não é apenas o poder da maioria, mas a proteção das minorias.

A proposta da Nova Geografia da EBP surge, em 2018, no movimento do Conselho em resposta à convocação de JAM a “um novo começo, uma mudança, uma transfiguração, uma aufhebung [Aufiebun] de acordo com o termo de Hegel”. E complementa: “Tudo começa sem ser destruído para ser levado a um nível superior.” [aula de 24/6/2017 – 1º. Parágrafo]

  1. A Nova Geografia na Região Sul

Em 2017, a Seção SC contava com 11 membros. Eram 12 posições a ocupar nas diversas instâncias: Conselho Deliberativo, Conselho Fiscal e Diretoria. Era inevitável que membros ocupassem dois desses lugares concomitantemente, provocando disfuncionamentos inevitáveis. A permutação ficava altamente comprometida.

Os fortes laços transferenciais que sustentavam a vida da comunidade que se constituíra como Seção SC trazia consigo, como de costume, efeitos de segregação, efeitos de grupo. Portanto, não éramos exceção quanto ao “problema” existente no Campo Freudiano.

Na época da dissolução, a Delegação Paraná contava com 10 membros. Até onde tenho conhecimento, também enfrentava dificuldades para permutar, além de não estar isenta das questões de grupo.

Supomos que a aposta da EBP na Nova Geografia visava tratar de questões como essas, para que, ao contrário do que aconteceu na IPA, o grupo psicanalítico não prevalecesse sobre o discurso da psicanálise[2], para que a comunidade analítica não se voltasse contra a causa[3].

Em outubro de 2017, por orientação do Conselho da EBP, o Conselho da Seção SC incluiu em sua pauta o debate sobre a nova geografia, na perspectiva do aggiornamento democrático da Escola. No entanto, e ainda durante o ano de 2018, ao mesmo tempo que tentávamos acompanhar e compreender a proposta e suas implicações no plano local, estávamos, na Seção SC, às voltas com a fundação do ICPOL – formalizado em dezembro de 2018, após um processo que durou anos.

  1. O ICPOL e a Associação de Estudos e Transmissão da Psicanálise Lacaniana no Paraná

Embora houvesse um “desejo de Instituto” decidido por uma parte dos membros da Seção SC, havia também o receio de que o inevitável trabalho adicional viesse em detrimento da Seção. Além disso, não havia clareza suficiente sobre a pertinência de certas atividades à Escola ou ao Instituto e o papel deste como “aguilhão” daquela. Havia perguntas que insistiam: em termos concretos, como o Instituto aguilhoaria a Seção? O que seria “fazê-lo de uma boa maneira”? Quais seriam os ganhos desse processo para a causa analítica? Foram muitas idas e vindas, não sem pontos de tensão, mas, por essa via, avançamos muito na clareza sobre as respectivas competências, o que foi um ganho importante advindo da fundação do Instituto.

Por outro lado, a Seção SC experimentou, de início, uma espécie de “esvaziamento”. Primeiro, porque a maioria das atividades que realizávamos na Seção eram próprias de Instituto – cursos, núcleos e ateliês. Segundo, porque os ingressos financeiros correspondentes a essas atividades migraram para o caixa do Instituto, “empobrecendo” a Seção. Além disso, o investimento de trabalho de membros e não-membros passou, em grande parte, ao Instituto recém-fundado, que, em consequência, nasceu forte. A meu ver, tratava-se menos de um esvaziamento propriamente dito, do que do desvelamento de um vazio que já estava lá, e que só ficou visível com a separação entre a Seção e o Instituto.

O entusiasmo despertado pelo novo e o trabalho investido no Instituto trouxeram muitas repercussões positivas, tanto no âmbito da episteme quanto da política. De outro lado, foi necessário lidar com a irrupção da rivalidade imaginária que teimava em opor Instituto forte e Seção fragilizada. Significantes tais como primo rico x prima pobre, boa-vontade e generosidade do primo rico para ajudar a prima pobre sempre que necessário, revelavam uma dificuldade no âmbito da política, das relações de poder entre as duas instituições, que tinha seus fundamentos na situação de dependência financeira da Seção em relação ao Instituto. Havia o risco, ao menos alguns assim avaliavam, de uma submissão de fato da Seção ao Instituto daí decorrente.

Apesar de o jogo das paixões ter marcado presença, já que o significante, o Outro e o gozo permeiam a experiência humana, a orientação pela psicanálise apontou caminhos para o bom funcionamento da Seção Sul e do Instituto, destacando-se aí a aposta na transferência de trabalho, as intervenções dos êxtimos, tanto na figura de colegas de outras Seções, como das instâncias da Escola, e, a meu ver, a própria incidência da Nova Geografia, que levantou a questão da territorialidade.

Afirmar que ambos, Instituto e Seção, estão a serviço da psicanálise, cada um à sua maneira, favoreceu o apaziguamento da rivalidade imaginária, apontando a causa analítica como ponto de confluência e referência maior para o encaminhamento de questões de funcionamento e vizinhança.

Sobre a Associação de Estudos e Transmissão da Psicanálise Lacaniana no Paraná, levei apenas algumas informações na fala à SLO, pois, ao prepará-la, descobri que pouco sabia sobre essa vizinha da Seção Sul. Creio que o melhor será que a Associação se manifeste, se assim o desejar, sobre as especificidades das suas questões nas relações de vizinhança com a Delegação Paraná, no passado, e com a Seção Sul, no presente.

  1. Pensando a experiência
    • Dissolução

No nosso caso, contamos duas dissoluções: a da Delegação Paraná e a da Seção SC. No campo jurídico, por uma mudança estatutária, a Seção Santa Catarina deixou de existir para dar origem à Seção Sul, com um novo estatuto e uma nova composição, agregando os colegas que residem no Paraná. A Delegação Paraná deixou de existir como efeito da alteração dos Estatutos da EBP, que não mais prevê a figura “Delegação”.

Portanto, a meu ver, não houve junção ou fusão da Delegação Paraná com a Seção SC. Foi necessário dissolver os fortes laços transferenciais que as constituíam para começarmos a inventar algo novo: a Seção Sul.

    • Subjetivação

Assim como acontece na fundação de uma nova Escola, fundar uma nova Seção é um processo que, como disse Miller, “deve ser subjetivado por uma comunidade que não pode se constituir a não ser no próprio movimento dessa subjetivação”[4]. A nova Seção não adveio quando foi formalizada como um novo sujeito de direito, quando os estatutos que a regulamentam como associação foram aprovados em dezembro de 2020, ou registrados em cartório em 2021. Ela emergiu bem antes, avançou aos tropeços, em tempos díspares para todos os envolvidos, e o processo segue seu curso ainda hoje.

    • Sós, mas não isolados

Cada um e cada uma, no seu tempo e à sua maneira, na solidão de sua relação com a causa analítica teve que se haver com a Nova Geografia, enfrentando aí diferentes graus e tipos de dificuldades.

A solidão de cada um e cada uma em sua relação com a causa analítica, não significa uma condenação ao isolamento, pois os laços estabelecidos pela transferência de trabalho permitem a constituição das comunidades analíticas, figuras do Outro que não existe, como disse Miller[5].

    • Transferência de trabalho

Segundo define Miller, a Escola é um conjunto de alunos que estudam, que se organiza em torno de um furo, de um não-saber. Portanto, trata-se de uma comunidade que se sustenta pela transferência de trabalho. Sem esse norte se perde a diferença que Lacan afirmou na sua crítica à IPA, associação de psicanalistas que se garantem mutuamente esse atributo.

Apostamos na transferência de trabalho para sustentar o laço que constitui o Uno da Seção Sul, pois seu sustentáculo não pode ser o amor a quem se supõe saber, nem as identificações, ou a imitação do Um, ou a fraternidade, com seus inevitáveis efeitos de segregação. Tudo isso está presente na vida da Escola, mas o que a mantém viva como instrumento da psicanálise, razão de sua existência, é a transferência de trabalho, a transmissão do desejo de saber.

    • A permutação

Na perspectiva estratégica da transferência de trabalho, na nova Seção Sul a lógica do Cartel – “juntemo-nos para fazer algo e depois nos separemos para fazer outra coisa” – articula-se, no nível tático, no plano do funcionamento institucional, com o princípio da permutação.

Intencionalmente buscamos favorecer a diversidade na constituição de comissões e grupos de trabalho, deixando em segundo plano considerações sobre competências e méritos, evitando arranjos fundados nas identificações segregativas e apostando no desejo de Escola. Dizendo de outra forma, buscamos promover arranjos e rearranjos orientados pela questão do trabalho em pauta, a cada vez, através do convite – ou convocação? – para que cada membro colocasse algo de si na construção da Seção Sul.

    • O Uno e o múltiplo

O percurso da dissolução à fundação implicou também em nos reconhecermos múltiplos, mas não sem referência ao Um da psicanálise e à Escola Una: diversos, mas não dispersos, na contramão do totalitarismo do pensamento único, mas também da dispersão que conduz ao isolamento.

    • Onde fica a Seção Sul?

A escolha forçada da vida digital deslocou nossa perspectiva de pensar automaticamente em um funcionamento reduzido a Curitiba-Florianópolis. Na ausência de encontros físicos e no esvaziamento das supostas “sedes”, a Seção Sul se construiu e sustentou pelo seu funcionamento, pelo trabalho on-line, sem referência à sede, ao local de moradia dos membros ou à cidade ou país onde estavam nossos colegas no momento de uma atividade. Dois membros mudaram sua residência de Curitiba para Florianópolis, sem que isso fizesse qualquer diferença para o funcionamento da Seção. Participantes não-membros de Porto Alegre e outras cidades da Região Sul se fizeram muito mais presentes.

Ainda estamos recolhendo os efeitos dessa lição.


[1] Diretora-geral da EBP-Seção Sul na gestão 2021-2023.
[2] Lacan, Carta de dissolução (1980). Outros Escritos, p. 319
[3] Miller, J.-A. El psicoanalista y su comunidad [1997]. In: Conferencias Porteñas, tomo 3. Buenos Aires, Paidós, 2010, p. 22.
[4] Miller, J.-A. Teoria de Turim, p. 1.
[5] Miller, J.-A. El psicoanalista y su comunidad [1997]. In: Conferencias Porteñas, tomo 3. Buenos Aires, Paidós, 2010, p. 20.
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