#04 - SETEMBRO 2024
A Henologia em Lacan: Há-Um!
Teresa Pavone ( EBP/AMP)
Há-um no lugar de onde ele vem. Ou seja, não há outra existência do Um a não ser a existência matemática. Há um argumento que satisfaz uma formula, é um esvaziado
de sentido: é simplesmente o Um como Um[1]
Como chegar à questão do Um e distingui-lo do ser em Lacan a partir da teoria dos conjuntos, mais especificamente a teoria do conjunto vazio que inicia a série dos números naturais? Como se dá o desenvolvimento lógico dessa premissa onde se funda o Um?
Podemos começar pensando que existe uma série de negativos em psicanálise: a castração (o menos phi); o sujeito barrado ($); a falta a ser; o des-ser; o Outro que não existe; o Ⱥ (A Mulher não existe); a relação sexual que não existe. E, finalmente, pensando nesse trilhamento de fórmulas lacanianas, caímos na análise da função do vazio que não é o nada. Frisemos isto, na lógica matemática do ultimíssimo ensino de Lacan.
A ontologia se encarrega do estudo, da doutrina do Ser e, justamente, não é disso do que se trata em Lacan ao final da construção de seu ensino. A leitura do curso de Miller O Ser e o Um, esclarece muitos pontos para entendermos a relação do ser com o Um do gozo, a relação da estrutura de linguagem com o real. Permite pensarmos o real em relação ao seu peso de existência, relacionado ao Gozo e ao Um sozinho. Especialmente, na aula VII, de 16 de março de 2011, em que Miller discorre sobre a henologia em Lacan.
Estaria aí a importância da função do vazio que convoca o S1 a se colocar em posição de semblante?
Lacan dá importância à obra de Frege[2]. Desde a os anos 50 já o citava e dialogava com o logicismo fregeano, o que o fez deslanchar em seu ensino, justamente em um caminho contínuo no sentido de isolar a articulação existente entre a estrutura do significante e a economia pulsional; entre significante e corpo; entre linguagem e gozo… Demonstrando como estes dois elementos se articulam e se desarticulam. A formulação do conceito de Um, vem precisamte em resposta a esta busca de Lacan que, em seu último ensino, falará do falasser que enlaça significante e corpo – Sujeito e existência.
Lacan encontra, no logicismo de Frege, os instrumentos teóricos para elaborar sua própria concepção da gênese simbólica do real da pulsão, o Um. O primeiro destaque que podemos abordar é em relação ao objeto, quando Lacan recorre a Frege e já o cita desde o seminário, livro 4, “A relação de objetos”, tratando da questão do referente e do objeto como um exemplo de uma teoria que recusa situar o estatuto e a gênese da dimensão simbólica a partir da abstração da experiência. Situando o impossível da apreensão do objeto por um sentido. Assim, com relação ao sentido, e pensando na materialidade da palavra, ele explicita que a mesma palavra pode se referir a dois objetos distintos. O mesmo objeto pode ter dois sentidos diferentes ou vários, dependendo do referente. A informação é a mesma, mas a referência pode ser diferente, o referente é distinto, então como pensar o real?
Outro destaque da teoria fregeana para pensarmos o Um em Lacan, é recorrer, em especial, à gênese fregeana do número e da sucessão dos números inteiros para extrapolar ao funcionamento dos significantes, em uma cadeia de significantes (existência do Sujeito), e da existência do Um na origem e em sua iteração na fala. O 111111 -{0}- [3] , conjunto vazio que se constitui como primordial para instituir a sequência numérica/cadeia significante. Assim, Lacan explicita a função desse Um, que se revela constituir propriamente o lugar da falta, um lugar vazio, mas que tem uma unidade, o zero.
Tanto para Frege como para Lacan, o número tem independência em relação a toda origem empírica. O número não tem por função primordial representar um fato físico (como designando extensivamente um simples agregado de objetos), da mesma maneira que ele não pode ser engendrado a partir da abstração da experiência. Para Lacan, contar não é empírico e é impossível deduzir este ato unicamente de dados empíricos. É precisamente isto que Lacan extrai da reflexão de Frege: o número não pode ser nem o representante de uma coleção, nem simplesmente a abstração da propriedade de um agregado. Em outros termos, o número não é um conceito empírico.
O que então responde pela origem da cadeia funcional do número? É necessário existir uma ordem autônoma e autorreferencial de determinação, capaz de responder tanto pela origem quanto pelo estatuto funcional do número. Lacan compartilha com Frege a crença de que a dimensão da determinação simbólica não pode proceder, por abstração, sob pena de desenvolver uma perspectiva psicologista da simbolização.
Lacan apropria-se do trabalho de Frege a fim de interrogar as características fundamentais desta ordem e do objeto que lhe é próprio; a fim de demonstrar que a substância do vivido é o lógico. Esta substância lógica do vivido como lugar do real pulsional inseparável da ordem simbólica, encontrará sua expressão conceitual maior sob a forma da noção de Um. Ou, melhor dizendo: o interesse da lógica por Lacan na aplicação à teoria psicanalítica, repousa no fato de concebe-la como “a ciência do real”. E o acesso ao real, ao modo do impossível, somente é pensável, pela lógica, pela matemática. O que se encontra na lógica matemática. Este impossível não é outra coisa senão o que Lacan utiliza para designar o modo de presença da insistência pulsional no seio da ordem simbólica.
A identidade do objeto é, para Frege, ligada às noções de Um e de Unidade. Assim, ele postula que o Um, enquanto número cardinal, é um objeto; já o Um enquanto cifra pode ser um nome próprio (que designa o objeto número Um); e, finalmente, a Unidade é um conceito. Para Frege um número é um objeto independente; é isto que recai sob um conceito. O objeto, não é uma propriedade empírica de um agregado. Se estamos tratando de uma dimensão essencialmente lógica, ele deve ser determinado simplesmente como isto que recai sob a extensão de um conceito. Assim, podemos ver que o conceito não é nada mais que a determinação de um conjunto preciso e delimitado dos objetos lógicos que formam a sua extensão. O zero não possui extensão, nenhum conceito recai sobre ele. Frege afirma que, neste caso, este conceito não possui extensão, isto é, que nenhum objeto recai sob este conceito.
A aproximação com a definição do 0 (zero), fornecida por Frege, esclarece que é um número dotado de duas propriedades: por um lado, ele designa o conceito de um objeto impossível; por outro, o zero paradoxalmente se conta como Um. O 0 (zero) se define ao mesmo tempo como conceito do impossível, é o signo numérico da contradição, funciona como elemento positivo e indica o vazio, ocupando assim uma função precisa na sucessão numérica. Ao mesmo tempo é representado pelo significante e é constituído como um signo vazio, e como uma entidade discreta enumerável. Há então, segundo Lacan, uma estreita afinidade entre o sujeito e o zero, o Um primordial que não convoca um S2. Trata-se do Um sem o Outro, sem o sentido. É o Um como um ponto onde o corpo foi marcado pelo real do gozo. Seria este Um que procuramos em análise ao ouvirmos o Sujeito?
Miller, em o Ser e O Um, vai justamente demostrar que o Um, a henologia vem antes da ontologia na constituição do Sujeito. Por isso ele grifa o número um em algoritmo romano (I), como o primeiro Hum, o zero, o conjunto vazio. O Um que não se liga a nada e não tem predicados, distinguindo o Ser desse Um. Miller diz que o Um se apaga e deixa vestígios, pegadas, uma marca que o semblante do saber nos discursos vem a encobrir, e no discurso analítico o “denuncia”. O Um é a marca originária a partir da qual se pode contar: um, dois, três, quatro, sob a condição de passar primeiro por sua inexistência. Para a psicanálise é a marca de um gozo indelével que está na origem de tudo para o ser falante que atingiu o corpo e se apagou, mas, faz ressonâncias.
Referências Bibliográficas:
LACAN, J. O Seminário, livro 19: …ou pior (1971-72). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012.
FREGE, G.: Frege, Vida e Obra; Em: Peirce e Frege, Os Pensadores, São Paulo, Editora Victor Civita, 1983.
MILLER, J-A.: A Henologia de Lacan, do Curso O Ser e o Um (2010/2011) – Inédito, tradução em português.
[1] LACAN, J. “O Um Que ele não acesse o dois”, in: O Seminário, livro 19: …ou pior (1971-72). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012. p. 181.
[2] Gottolb Frege foi um filósofo alemão que se enquadrava na filosofia analítica, a qual se atém à linguagem analisada pela lógica. Um dos filósofos mais importantes de sua época, que tenta aproximar a filosofia da linguagem e da matemática.
[3] Lacan, Jacques- O Um Que ele não acesse o dois – O Seminário, livro 19: …ou pior (1971-72). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012, p. 156.