#05 - Outubro 2022
A escuta da existência
Gustavo Ramos da Silva[1]
À primeira vista o título da intervenção de Jacques-Alain Miller intitulada “Ler um sintoma” pode nos convidar a interpretar que a leitura do sintoma se daria da mesma maneira que a leitura de um texto qualquer, mas, em se tratando de psicanálise de orientação lacaniana, os escritos não são para serem lidos.
Isso já nos coloca diante da problemática do que seria essa leitura. Uma leitura que, para ser feita, é preciso colocar algo de si nessa relação, e esse algo de si pode ser a sua relação com o inconsciente, o que te atravessa ao colocar em prática a leitura?
O aparato freudiano nos deu as ferramentas edípicas de um certo sentido ao que estava sendo escutado e, de certa forma, essa é a busca em um início de análise. Na análise que se inicia o estatuto da revelação ganha prevalência e, com ela, a procura por um sentido a essas revelações. Sob essa perspectiva, a leitura estaria na seara de um sentido a ser descoberto por trás das palavras, ou seja, partimos do pressuposto de que há um sentido a priori e ele vai ser revelado no próprio processo de leitura.
No entanto, como no processo de análise não termina nesse ponto, nós nos direcionamos a uma análise que dura e aí a revelação dá lugar à repetição e com ela uma certa estagnação. Com isso, o processo de leitura também recebe uma torção e passa de um sentido a priori para ser lido e ouvido para algo que provoca uma estagnação. É preciso uma duração nesse processo para que algo se estabeleça.
Aqui já não estamos no enquadramento edípico, mas sim no enquadramento borromeano e esses três nós RSI não produzem mais o sentido de outrora, fazendo com que o próprio conceito de interpretação se desloque, como nos colocou Miller no texto supracitado, da escuta do sentido à leitura do fora de sentido. A problemática aqui é que o sentido é a imbricação de simbólico e imaginário, já o real é exterior ao sentido, não é possível acessar o real pela via do sentido, somente talvez por algo fora do sentido. Mas é importante apontar que esse fora de sentido não é sem referência ao sentido, pois é preciso passar primeiro por uma construção ficcional para que algo se dê e se coloque em questão.
Na lição do dia 30 de março de 2011 do curso L’Un tout seul, Jacques-Alain Miller vai postular que o real é o fantasma, ou ainda que o fantasma está no lugar do real para o sujeito porque o fantasma retorna sempre ao mesmo lugar para o sujeito até encontrar o objeto a que para a cadeia significante, congelando-o nesse lugar (sem paginação). Esse congelamento fixa o sujeito nessa posição, derivando daí um gozo produzindo o sentido. Para desestabilizar essa relação, é preciso a queda do objeto a como uma queda do fora de sentido, justamente o que se lê em uma análise, a leitura do fora de sentido. Se quisermos pensar em sentido nesse momento, talvez possamos afirmar se tratar de um efeito de sentido real, na esteira do que Miller trabalha no curso El ultimíssimo Lacan. Tal efeito nos coloca diante da repetição com a inclusão do gozo, e aí não podemos mais falar em cadeia significante, mas na pura iteração, na iteração do Um.
Será que nesse momento não podemos dizer que haveria uma escuta dessa iteração e, com isso, dizer que a escuta da iteração seria uma escuta da existência como nos fala Miller? E isso implicaria também a passagem da ficção para a fixão do real, sem mais o sentido de outrora.
Dessa escuta da existência, a partir da queda do objeto a e com o efeito de sentido real via iteração, pode se dar uma leitura, uma leitura do sintoma, uma leitura do fora de sentido, uma leitura de uma análise.