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A BIBLIOTECA E A TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE

Arte: Yayoi Kusama
Graciela Bessa

Boa noite a todos, foi como muita alegria que recebi o convite da Seção Sul através de sua Diretora de Biblioteca Teresa Pavone em estar aqui num momento tão importante para a transmissão da psicanálise, a inauguração da Biblioteca da Seção Sul em Curitiba

Segundo Judith Miller no texto Delicadeza[1], “as mudanças no mundo e com isso as mudanças também na clínica, exigem interrogar o lugar que tem a psicanálise e a função que toca a um analista, sabendo que desde o nascimento da psicanálise esse lugar deve ser defendido e esta função delicada ser sustentada”.

Em 1990 foi criada a Federação Internacional de Bibliotecas de Orientação Freudiana, sua fundadora Judith Miller, com seu ato, incentiva a criação de bibliotecas de psicanálise e inaugura uma modalidade de trabalho no Campo Freudiano. As bibliotecas seriam um lugar de atuação lacaniana, um lugar de interlocução constante com aqueles que se ocupam da prática analítica e a opinião esclarecida de cada cidade em que elas estejam inseridas. Desse modo, tal como a Escola, a Biblioteca não oferece seu acervo apenas para especialistas, ou seja, acolhe tanto analistas como não analistas, embora priorize o campo de saber da psicanálise.

Para Judith Miller uma biblioteca pertencente à FIBOL se orientaria fundamentalmente sobre 3 pilares, sustentar polêmicas, praticar a discussão e obter informações de novas fontes. Para isso é preciso que sua atuação não se restrinja à aquisição de volumes, mas que agreguem a isso o compromisso “na organização de apresentações, conferências, debates”.

Para que haja a divulgação e a elucidação da prática analítica é preciso uma elaboração documentada, e a biblioteca exerce um papel fundamental uma vez que cabe a ela oferecer uma documentação em primeira mão para que possibilite um trabalho real de estudo ou ensino. Na biblioteca encontramos um tesouro, cujo conteúdo é o saber, ao alcance de quem o deseje, de quem esteja tocado pela causa analítica. Sob essa perspectiva, reconhecemos que o trabalho realizado na biblioteca teria a orientação de unir o trabalho em extensão e o trabalho em intensão. É essa a diferença, a meu ver, de uma biblioteca pertencente à FIBOL e uma biblioteca que se define como uma coleção de obras que serve de lastro à educação e transmissão de conhecimentos.

As bibliotecas do Campo Freudiano têm o compromisso com a transmissão da psicanálise. Considero que encontramos aqui um desafio uma vez que Freud situou a psicanálise no campo do impossível, como uma das profissões impossíveis, ao lado de governar e educar. O retorno a Freud proposto por Lacan é marcado por essa orientação, ou seja, a transmissão da psicanálise, seu ensino deve incluir o real, o impossível em torno do qual o próprio saber se organiza.

Para Laurent, Lacan concede um lugar privilegiado ao ensino da psicanálise, melhor dizendo à transmissão da psicanálise. Nesse campo de ensino é importante diferenciar dois registros, um é a transmissão da disciplina que está ligado diretamente ao saber do psicanalista e o outro é a transmissão da maneira que se lê o inconsciente. Em todos os dois registros a construção de saber não se resume à transmissão de um já sabido, a apresentação de uma erudição, principalmente nos debates que propicia. Mas comporta também a construção de um novo, a subversão de um já sabido que acontece com a inclusão da discussão da experiência clínica. Talvez esse seja um grande desafio de uma biblioteca que se dedica à transmissão da psicanálise, que ela esteja orientada pelas questões: como se ensina a clínica e como a clínica nos ensina, que possuem uma relação moebiana, se passa de uma a outra, numa relação de continuidade e não de descontinuidade.

Mesmo que esteja reservado à biblioteca a transmissão de um saber exposto, cabe nos perguntarmos como podemos sustentar numa biblioteca do Campo Freudiano a transmissão do que a clínica tem de vivo, como sustentar o real da clínica, que nos possibilite avançar, elaborar um saber analítico que esteja à altura de nossa época. Como um campo notadamente marcado pelo saber, pela exposição do saber, seja também orientado pelo não saber. Sugiro que uma biblioteca que se ocupa do campo de saber da psicanálise, de seu ensino, de sua transmissão esteja orientada pela articulação entre a transmissão da clínica e a transmissão do saber.

Sobre o ensino, Miller nos diz algo bastante interessante. Ele afirma que o ensino em psicanálise comporta um paradoxo e é isso que faz toda a diferença com o ensino universitário. Da mesma forma que não se ama dando o que se tem, não se pode ensinar pautado apenas no que se sabe. Se aquele que ensina quer passar todo o seu conhecimento, o que ele produz no seu interlocutor é aborrecimento, ódio. Por isso que Lacan aconselhava aqueles que se imbuíam dessa tarefa que ensinassem a partir do que não se tem, de seu não saber. Ou seja, para ensinar e que esse ensino não esteja inscrito nos marcos universitários, é necessário decepcionar a demanda de saber de uma “boa maneira”. Isso porque estamos envolvidos com o real. Destaco aqui que a expressão boa maneira não comporta a dimensão do ideal.

A vertente da investigação é preciso destacar, também, como uma das funções da biblioteca do campo freudiano. Para Laurent, os cursos de Miller são demonstrações em ato do que é investigar. A investigação em psicanálise, segundo Laurent, tem a ver com um decidir politicamente qual é o saber referencial atual, que se distingue do real da ciência, mas tem a ver com ele. Sob essa perspectiva, uma investigação está orientada pela exigência de contemporaneidade.

Seja pela via do ensino, ou pela via da transmissão, há uma aposta de que algo do impossível de se transmitir possa ser transmitido. Isso quer dizer que na transmissão da psicanálise o simbólico opera através meio-dito.

A partir do texto de Judith Miller, Delicadeza, pensei na Biblioteca do Campo Freudiano como um lugar para aqueles que inscrevem seu trabalho no Campo Freudiano e interrogam cada vez mais o lugar da psicanálise no mundo, assim como a função que toca o analista. Um lugar que não só o fio da invenção de Freud é resguardado por Lacan como também onde a doutrina analítica conhece avanços, tal como o último ensino de Lacan.

Foi isso que testemunhei nesses dois anos como Diretora de Biblioteca da EBP e pude acompanhar de perto no trabalho das Diretorias de Biblioteca das Seções, o modo como cada diretor cuidou para que o espaço da biblioteca fosse um lugar de debate entre os analistas, entre a psicanálise e a cidade. Um lugar de transmissão em que estão presentes tanto a vertente da intensão quanto da extensão.

Quero parabenizar o esforço e trabalho decidido de Teresa Pavone em fazer com que esse dia chegasse e Curitiba pudesse ganhar esse espaço de interlocução, de pesquisa, de transmissão da psicanálise.


[1] Miller, Judith. Delicadeza. In: Mediodicho, Revista de Psicoanalisis, n. 34, Año 12, Córdoba, novembro de 2008, p. 48

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