Chegamos ao último boletim P U L S a R. Dessa vez, na seção Ancoragens,…
Uma ancoragem
Lucíola Macêdo (EBP/AMP)
Convidada pelo Boletim P U L S a R a revisitar algo que havia escrito à propósito das questões atinentes ao gozo, ao racismo e à segregação[1] a partir de uma passagem de Lacan em Televisão, relanço algumas questões que ainda me colocam à trabalho, as desdobro um pouco mais, agregando-lhes outras.
Ao ser interrogado de onde viria sua segurança em preconizar uma nova escalada do racismo justo naquele momento (em 1973) em que imperava uma atmosfera de otimismo diante da promessa de integração das nações por meio dos mercados comuns –
Lacan dirá: “No desatino do gozo – só há o Outro para situá-lo – mas na medida em que estamos separados dele”. O problema de deixar esse Outro entregue a seu modo de gozo não se resolve impondo-lhe “o nosso”, tomando-o por “subdesenvolvido”. Somando-se a isso “a precariedade de nosso modo, que agora só se situa a partir do mais-de-gozar” [2], prossegue Lacan.
A segregação horizontal e “ramificada”[3], na escala e magnitude que vemos hoje, seria uma derivação da “segregação estrutural”[4], aquela inerente à constituição o sujeito e à ordem simbólica, ou responde a uma lógica diferente, quando há somente o mais-de-gozar para situar o gozo? Quais as consequências desse estado de coisas, em larga escala para a civilização?
Se a ordem simbólica se funda ao deixar algo fora dela, a ser simbolizado no interior, como ausente – quais seriam as consequências da precarização desta operação? O que recolhemos na clínica e na direção do tratamento? Nas entradas em análise e nas análises que se interrompem? Haveria alguma incidência verificável nos finais de análise?
Na esteira do discurso capitalista e de sua “miséria”, já não são os mercados comuns, mas as redes e o consumo desenfreado junto às mídias sociais e sua avalanche de signos esvaziados de significação, suas múltiplas conexões pontuais e instantâneas, a principal forma de “sociabilidade”, no lugar do laço social. Fatores que juntam, conectam, e ao mesmo tempo isolam e segregam, não por um Outro, mas por si mesmos. Efeito paradoxal: a coletividade não pode mais ser pensada como o oposto da segregação. A segregação se ramifica, restando o vestígio e a cicatriz de uma “evaporação do pai”[5].
O que acontece quando o pai se evapora? Ele virá gás[6]. E quais são as propriedades dos gases? Um gás não é sólido, concreto, palpável, mas está por todos os lados, disseminado, onipresente. Não enxergamos os gases, mas eles produzem efeitos. Eles podem ser poluentes. Um gás é algo que se respira. Como parece ser o que é da segregação praticada a partir do que se coletiviza do gozo como mais-de-gozar quando o pai se evapora, disseminando-se, sem contornos nítidos. Quando os contornos episodicamente se formam, já não se trata apenas de classe, raça, religião. Mas de bolhas. Das bolhas de certeza[7], mas também de cada um em sua bolha, e de bolhas imagéticas em profusão infinita: cada um com os seus espectros e suas paisagens-cenário feitas para abrigar as miríades de microimagens instantâneas de si. Onde está o imaginário, hoje? Divorciado do simbólico? Em bodas infinitas com o real?
Seriam as chamadas comunidades de gozo os produtos do discurso do capitalismo na chamada hipermodernidade e do hiperconsumo? Invólucros ou às vezes slogans mais ou menos precários do individualismo radical, da fragmentação ao infinito das categorias, aliados à percepção que cada um tem de si próprio como único e senhor da sua máxima individualidade? Nesse estado de coisas a segregação ramificada e multiplicadora de barreiras seria consubstancial ao modo de sociabilidade das sociedades contemporâneas?
Eis as perguntas e considerações que me ocorre partilhar!
[1] Cf. Macêdo, L. “O analista, o real e a época – Notas em progresso”. Disponível em: https://encontrobrasileiroebp2022.com.br/o-analista-o-real-e-a-epoca-notas-em-progresso-2/.
[2] Lacan, J. Televisão. Outros Escritos, Rio de Janeiro, JZE, p.533.
[3] Lacan, J. Nota sobre o Pai. In: Opção lacaniana, n.71, dez. 2015, p.7.
[4] Bassols, M. O bárbaro. Transtornos de linguagem e segregação. In. Opção lacaniana online nova série, 2018, n. 25 e 26.
[5] Lacan, J. Nota sobre o Pai, p.7.
[6] Cf. Macêdo,L. Retrato do pai enquanto vapor. Correio, n.94, abril 2025, p.41-49.
[7] Miller, J.-A. Intuições milanesas II. Opção Lacaniana online nova série, n. 6, nov. 2011.