Neste primeiro aporte da Comissão de Referências à VI Jornada da Seção Sul daremos destaques…
Editorial – Boletim PULSaR #01
Boletim da VI Jornada da EBP – Seção Sul
P U L S a R
“A gente escreve o que ouve – nunca o que houve”
Oswald de Andrade
Um boletim de jornada constitui um espaço que se perfaz enquanto percurso, meio do caminho e meio de um caminho. É algo ainda aberto, mas que nem por isso permanece de todo desorientado. Longe disso, pode-se sustentar que, por um lado, ele comporta uma série de questionamentos que deverão ser minimamente respondidos a fim de concretizar uma jornada; por outro, ele delineia até mesmo uma sucessão de perguntas que – por que não? – talvez acabem por se desdobrar em outras jornadas, sejam elas mais ou menos particulares. Este boletim, P U L S a R, se inscreve justamente aí, considerando inclusive que o próprio título da VI Jornada da EBP – Seção Sul carrega uma indagação – “cadê o gozo?” –, na medida em que volta suas atenções para as possibilidades e para os modos de “operar sobre o que é mais próprio de cada um”[1].
Este nome P U L S a R implica uma duplicidade significante que nos pareceu tão oportuna quanto bem-vinda. Em primeiro lugar, ele diz respeito aos corpos vivos, àqueles sem os quais não há gozo[2], às suas pulsações que tantas e tantas vezes nos fazem recordar que “as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer”[3]. Mas P U L S a R ainda faz referência aos espaços mais enigmáticos e obscuros: os pulsares, um tipo de estrela de nêutrons composto por um núcleo atômico muito concentrado e que gira vertiginosamente. Com os rodopios de seu intenso campo magnético, os pulsares capturam inúmeras partículas e, entre elas, os elétrons que “emitem feixes de radiação […] como luz visível”[4]: “piscando como se fossem metrônomos cósmicos, os pulsares são mais precisos que o mais preciso relógio comum”[5], como um verdadeiro “farol cósmico”[6].
Pois bem, se há quem lembre que também nós somos feitos da poeira das estrelas e se, nesta VI Jornada da EBP – Seção Sul, nos referimos ao gozo como algo que “acontece no corpo ou toca o corpo”[7], por que não fazer do gozo nosso farol? É por isso mesmo que no nome deste boletim também incluímos o objeto a postulado por Lacan como operador de uma logificação estratificada e até mesmo fugidia que, tal qual percebemos através do nó apresentado em A terceira, participa do gozo fálico (entre Simbólico e Real), do gozo do Outro (entre Real e Imaginário) e do sentido (entre Imaginário e Simbólico). Aqui, ele já não se confunde com um objeto desejado, mas com aquilo que “constitui o núcleo elaborável do gozo”[8]. Como destaca Marie-Hélène Brousse[9], trata-se de algo que insiste produzindo ondas – as mesmas que, no transcurso de um tratamento, nos permitem enxergar melhor aquele buraco negro que se confunde com as experiências de gozo. Apostando, então, que em uma análise não se trata “de gozar mais ou melhor, mas de gozar se machucando menos”[10], este boletim comportará duas seções em cada uma das três edições previstas: ancoragens e osso.
Ancoragens
Ao longo desta seção, sem perder de vista as faíscas de nosso farol e apostando em um esforço de precisão, trataremos de incluir pequenos textos que apresentem algumas linhas de conversa e ferramentas de legibilidade que digam respeito especialmente às experiências de gozo na clínica, na cidade e inclusive na Escola. Assim, pretende-se recolher os desdobramentos e as sementes de um saber fazer que se concentre um pouco mais em torno das modulações do gozo.
Osso
“No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra”
Carlos Drummond de Andrade
Em O osso de uma análise, Miller se serve do poema de Carlos Drummond de Andrade, “No meio do caminho tinha uma pedra”, para dizer do que se trata em relação ao osso de um tratamento[11]. Essa repetição insistente manifesta o caráter incontornável da presença da pedra. E é justamente essa repetição significante, dirá ele, que atrai o sujeito a se colocar no meio do caminho, convocado a ser afetado por essa pedra enquanto obstáculo intransponível. O caminho cria a pedra, que se encontra no seu meio.
Esse meio pode estar tanto no começo (nas análises que se iniciam) como no fim (nas análises que duram). E no fim do caminho há uma pedra preciosa. Não haveria caminho, segue Miller, não haveria pedra, se não houvesse ser falante, cujo bem-dizer visa, no percurso de uma análise, a uma operação de redução. Um caminho do contingente ao possível.
Qual é esse obstáculo? Pergunta-se o autor. Podemos ultrapassá-lo? Como?
Ou seja, como nos servirmos da pedra, à boa maneira, cernindo algo do gozo, na época do empuxo a um gozo deslocalizado? Em tempos de aliança entre o capitalismo e a necropolítica?
São questões que nos põem a trabalho, visando, como analistas, estarmos à altura da subjetividade da época, cujo horizonte nunca se alcança, por ser da ordem da impossibilidade, mas que nos permite, no melhor dos casos, estar a uma certa distância, para enxergarmos as luzes e a escuridão do presente. Nesta seção, portanto, contaremos com as questões propostas por alguns colegas que estiveram presentes nas atividades e preparatórias desta VI Jornada da EBP – Seção Sul. Através delas, também poderemos nos orientar um pouco mais sobre aquilo que resta, que insiste como uma pedra no meio do caminho.
***
Neste primeiro número de P U L S a R, contaremos com quatro textos que giram em torno do lançamento da VI Jornada da EBP – Seção Sul que ocorreu em 28 de maio. Na seção “Ancoragens”, teremos a Abertura elaborada por Leonardo Scofield (EBP / AMP), Diretor Geral da EBP – Seção Sul, e o Argumento apresentado por Marcia Stival (EBP / AMP), Coordenadora da VI Jornada da EBP – Seção Sul. Na seção “Osso”, contaremos com as questões propostas por Mariana Zelis (EBP / AMP) e por Flávia Cêra (EBP / AMP). Este boletim também publicará algumas referências escolhidas pela comissão coordenada por Laureci Nunes (EBP / AMP) e Paula Nocquet a fim de nos auxiliar no balizamento deste percurso.
Last but not least, lembramos que este boletim também relança um convite elaborado por Augusto de Campos ainda em 1975, quase na mesma época em que Lacan enunciava as pontuações que seriam conhecidas como A terceira. Esse convite veio em “O pulsar”, poema musicado posteriormente por Caetano Veloso, e que diz o seguinte: “Onde quer que você esteja / em Marte ou Eldorado / abra a janela e veja / o pulsar quase mudo / abraço de anos-luz / que nenhum sol aquece / e o oco escuro esquece”.
Equipe do Boletim P U L S a R
Diego Cervelin (EBP / AMP) e Valéria Beatriz Araujo – Editores
Fernanda Batista e Priscila de Sá Santos
[1] Stival, M. Argumento para a VIª Jornada da Seção Sul: Cadê o gozo? O que diz a época e a clínica.
[2] Lacan, J; Miller, J.-A. A terceira / Teoria de lalíngua. Rio de Janeiro: Zahar, 2022, pp. 38-39.
[3] Lacan, J. O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro, Zahar,
[4] Sagan, C. A vida das estrelas. In: ___. Cosmos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 302.
[5] Ibidem.
[6] Ibidem.
[7] Stival, M. Argumento para a VIª Jornada da Seção Sul: Cadê o gozo? O que diz a época e a clínica.
[8] Lacan, J; Miller, J.-A. A terceira / Teoria de lalíngua. Rio de Janeiro: Zahar, 2022, p. 35.
[9] Brousse, M-H. Modo de gozar en femenino. Olivos: Grama Ediciones, 2021, p. 13.
[10] Aromí, A. Vamos lá! In: Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 89, p. 79, dez. 2024.
[11] Miller, J.-A. A operação-redução. In: ___. O osso de uma análise. Rio de Janeiro: Zahar, 2015, pp. 15-28.