Teresa Pavone (EBP/AMP) É com satisfação que apresento o VIII Boletim da Seção Sul ao…
Todo contato é crise[1]
Gresiela Nunes da Rosa[2] (EBP/AMP)

Há pouco mais de um ano uma amiga me dizia que eu devia fazer o pedido para me tornar membro da Escola e eu respondia que eu estava contente com meu trabalho de formação, que estava fazendo minha análise, minhas supervisões, estudando bastante, inclusive em cartéis e que não tinha vontade nenhuma de perder meu tempo com reuniões intermináveis e improdutivas, com os efeitos de grupo, com ter que lidar com gente que, se achando importante, confunde autoridade com autoritarismo. E já com um tom um pouco mais inflamado eu ia dizendo: a Escola é uma coisa que atrapalha demais o desejo. Mas o que saiu, o que eu disse, foi: a Escola é uma coisa que atrapalha demais o gozo. Uma semana depois eu estava encaminhando meu pedido para me tornar membro da Escola. E aqui estou.
A formação estava, desde o princípio, localizada em relação à Escola, dirigida pela lógica do Sujeito Suposto Saber. A Escola alojada neste lugar do sujeito suposto saber como se faz uma formação em psicanálise. Para além da direção que é o tripé freudiano, ainda faltava que se dissesse estudar o que? Com quem se analisar? Com quem e como supervisionar o próprio trabalho? (perguntas que implicam o para onde se dirige uma análise). A orientação lacaniana então funcionava como o nome para o Sujeito Suposto Saber. Se isso não se constrói apenas no mistério em que parte da transferência se sustenta, é porque, como em algum dia fora anunciado por Lacan, “Tu podes saber o que pensa a Escola”. Podemos saber o que pensa a Escola a partir da produção teórica que advém de seus membros, do que se debate nos eventos, na maneira como se lê os casos clínicos e a presença do psicanalista nas Jornadas e Conversações Clínicas, nos testemunhos de passe.
Mas o inconsciente é intérprete. Lacan diz que o equívoco é uma arma contra o sintoma e é com ele que alguma verdade do sujeito poderia se mostrar. Ainda que o equívoco não seja em si um enunciado, ele faz furo no dito, perturba aquilo que parecia estabelecido, permitindo então um deslocamento da própria posição em que se encontra o sujeito. O equívoco, na medida em que não é um enunciado, aponta para o lugar da enunciação, assim como também pode abrir caminho para o ato.
Em “Desejo e sujeira: ensaio sobre a fenomenologia da poluição feminina na antiguidade”, Anne Carson diz:
Enquanto membros da sociedade humana, nossa tarefa cotidiana mais difícil é, provavelmente, o toque. Podemos tocar uns aos outros de modo físico, emocional, moral ou imaginário. Todo contato é crise. Como dizem os antropólogos, ‘o toque é sempre um golpe modificado’. A complicação que qualquer nível de contato instaura é a violação de um limite estabelecido, a transgressão de uma categoria fechada, à qual não se pertence. (CARSON, 2023, p. 11)
Trago aqui essa citação como convite para pensar esse ponto em que a alteridade, aquilo que vem do outro e também do estranho em si mesmo, produz crise. Todo contato é crise. Penso que podemos chamar de contato aquilo que toca a partir da alteridade. Não seria a alteridade esse lugar enigmático que mantém a pertinência da pergunta: quem fala? E essa pergunta já não põe em relevo o fato de que há um outro que fala? A alteridade não poderia ser tomada como um tipo de espelho em que reflete justamente aquilo que sobra do que não se identifica?
Se a pergunta “quem fala?” é uma pergunta pelo autor do dito, a pergunta “onde estou no dizer”, aponta para o lugar desde onde se diz. É um deslocamento interessante na medida em que não põe a questão no campo do sujeito, que de certa forma procura por sua unidade no dizer, mas coloca ênfase na posição em que se está quando se diz, permitindo pensar que há aí um tipo de desaparecimento do sujeito, que só volta a aparecer na medida em que se localiza em algum lugar. O foco passa a ser o lugar e não o sujeito. Creio que isso implica uma nova volta em relação à questão da autoria. Permite pensar a enunciação como distinta do enunciado, não porque é outro quem diz, mas que quem diz, diz de certo lugar, de certa posição. Importa assim, menos o que diz e mais se o que diz está dito desde o lugar do mestre, do analista, da histérica, do universitário, conforme Sérgio Mattos nos lembrou em seu testemunho na última Jornada da Seção. O lugar desvela então o gozo implicado aí.
Mas a proposta de Miller em sua teoria de Turim é que tomemos a Escola como um sujeito. Isso parece interessante, visto que o mais comum seria tomá-la como lugar. Não deixa de ser um lugar, me parece. Um lugar em que se aloja uma ideia do que é a psicanálise, de como se sustenta a formação do analista. Um lugar implica pensar numa geografia, em alguma coisa que tem limites. No entanto essas ideias, e talvez esses limites, no que concerne à Escola, paradoxalmente se sustentam no não saber: não saber o que é um psicanalista. Não saber onde se encontra a borda. Isso inclusive implica em sustentar o não saber em tudo que se derivar daí. O não saber como centro para que nada ganhe a consistência rígida.
Não seria esse não saber o próprio do que constitui o sujeito como dividido? O sujeito dividido entre um significante e outro, o sujeito que não conquista jamais a consistência de ser. O não saber como esse furo que produz o próprio movimento da cadeia de significantes que faz existir, nunca de maneira completa, o sujeito.
Então o que é a Escola? Temos algumas respostas dadas por Lacan: um refúgio para o mal-estar na civilização, uma base de operações. Duas ideias que bem parecem contraditórias. Isso, a contradição, ou os muitos nomes que se pode colocar aí, diz sobre a concepção de Escola como sujeito dividido? Ou será que a Escola é um sujeito dividido porque o que está em jogo é o múltiplo que compõe seu conjunto? Cada um dos que compõem a Escola, membros e também os não-membros, colocam sua própria interpretação em jogo e tensionam esse impossível de fazer unidade no coletivo.
Como lugar, a Escola me parece um lugar privilegiadíssimo em que se pode colocar em jogo justamente essa tensão entre o Um e o coletivo sem que isso desemboque na guerra. Não é que não entramos em guerra, por suposto. Mas se isso ocorre, creio que podemos dizer que o que mobiliza a presença do Um talvez não seja de fato o Um e sim a fantasia do sujeito, aquilo que quer fazer consistir a relação, a tese, a consistência, a unidade. O falso um que se sustenta a partir da fantasia, que em última instância visa a completude com o Outro.
Será preciso então que se possa saber algo daquilo que uma análise é capaz de ensinar. Miller diz que se
(…)sabe algo à medida que é analisado, que se analisa, que conceitualmente captou o que ensina uma análise, que cada um está só – só com o Outro do significante, só com sua fantasia, da qual “um pé está no Outro”, só com seu gozo, êxtimo. (MILLER, 2016, p. 7).
A pergunta que, no entanto, me faço é a se a experiência de Escola não permite, não convida, a que possamos, se a experiência da análise também permitir, ir além da fantasia? Além desse lugar que visa fazer-se um com o outro?
Volto a ideia de Anne Carson de que todo contato é crise. Todo contato (com a alteridade) fura a borda que faz limite. Todo contato é crise porque o gozo do outro é sempre estranho ou porque a presença do outro é capaz de fazer aparecer o gozo próprio como estranho.
A questão que me interessa e creio que interessa ao próprio funcionamento da Escola é qual é a consequência desta crise, deste impacto que é a presença da alteridade. Se a crise é respondida a partir da fantasia creio que é o lugar em que o mal-estar se instala podendo provocar o pior. Aí está em jogo o não querer saber nada sobre isso, sobre o fato de que há Um. Sobre o fato de que é impossível fazer consistir a relação. Aí, temos “o sujeito que se propõe ele mesmo como Ideal” (MILLER, 2016, p. 5). Por outro lado, dirigidos pelo ideal, pela causa, pela causa freudiana, pela orientação lacaniana, o Um pode fazer da crise um movimento, o deslocamento da cadeia significante e também mais que isso, o laço mesmo e também o ato. Aí temos “um sujeito que tem relação com um Ideal, como os outros que convida a se reunir em sua Escola” (Idem). Como o Um faz laço?
Dizemos que o que faz laço é o discurso, mas como seria poder fazer laço fora do enquadre discursivo? Ainda pergunto sobre o que no discurso faz o laço? E também o que seria o laço? O que é capaz de produzir este laço que nos interessa propriamente na Escola que é o laço de trabalho? Lacan disse que o gozo feminino é capaz de produzir desejo. Poderíamos tomar essa proposição para pensar que tanto o que faz laço como o que transmite alguma coisa no nível do desejo de saber (será que não é a mesma coisa?), por exemplo quando pensamos o ensino da psicanálise, é o gozo enquanto tal, o feminino?
Creio que podemos pensar a questão do gozo em uma dupla vertente. A do gozo veiculado pela fantasia, que põe em jogo o fálico, o não querer saber nada do furo, do não há. Mas há também o outro gozo que não busca completude no e para o Outro, mas que a partir do Outro encontra um lugar. Acho que esta faceta do gozo não tem vocação para a tirania e neste sentido é o que coloca a si mesmo e ao outro a trabalho a partir do lugar próprio, ainda que orientados pelo Ideal, produzindo aí um laço de trabalho. Esse então seria o gozo que convém a um lugar que se propõe a funcionar a partir da lógica do S(Ⱥ).
Miller diz que que para que esta comunidade chamada Escola seja possível, supõe-se a presença de
sujeitos que sabem sobre a natureza dos semblantes, e sobre que a do Ideal, igual para todos, não é outra coisa senão uma causa para cada um experimentada no nível de sua solidão subjetiva, como uma escolha subjetiva própria, uma escolha alienante, inclusive forçada, e que implica uma perda. (MILLER, 2016, p. 6).
A Escola é então uma experiência. Como dizer sobre ela? Experiência e enunciação são dois elementos separados. Que alguma coisa que aconteça ganhe o status de experiência não é qualquer coisa. Sustentaria a ideia de que a experiência pode ser o que decorre do contato. A experiência como crise, aquilo a partir do qual não se pode voltar ao estado anterior. A Escola é um lugar privilegiado neste sentido. É um lugar propício à experiência. Que se possa dizer a partir deste lugar é outra coisa, e que esse dizer seja causa do laço é ainda outra. Um dizer que causa desejo de trabalho seria então esse ponto em que enunciado e enunciação, e porque não dizer, forma e conteúdo se encontram melhor articulados?
A Escola é uma força contra o cinismo, disse Laurent. Eu diria que a Escola de fato é uma coisa que atrapalha demais o gozo. Que a experiência de Escola é crise. Atrapalha o gozo de não querer saber nada sobre o “não há relação sexual”. Mas por outro lado, é com o gozo, outro gozo, que cada um pode sustentar na coletividade a causa que é capaz de constituir uma comunidade.
“Preservar sua inconsistência como seu bem mais precioso, seu agalma.” (MILLER, 2016, p. 13). Está aí o ponto em que forma e conteúdo bem poderiam se articular na experiência de Escola. Como contar essa experiência?
Que o espírito da psicanálise sopre sobre nós!
[1] Texto apresentado no Seminário de Orientação Lacaniana: Onde estou no dizer. Ensino e enunciação, coordenado pelo Conselho da EBP-Sul. No dia 30 de outubro de 2024.
[2] Membro da EBP/AMP.