Teresa Pavone (EBP/AMP) É com satisfação que apresento o VIII Boletim da Seção Sul ao…
A transferência de trabalho e o panfleto
Paula Nathalie Nocquet

Um relato de J-A Miller[1], que me pareceu muito interessante para abrir esse tema da experiência de Escola, é que aos seus vinte anos, Lacan se aproxima com panfletos, eram o Ato de Fundação, e lhe pergunta: “quantos você quer, para seus camaradas?”. Esses camaradas eram seus colegas da École Normale Supérieur e Miller responde: “uns dez”. Desde então, como ele próprio relata, não deixou de repartir panfletos para seus camaradas. Entregar um panfleto a um jovem de vinte anos pode parecer pouco, mas, na verdade, é uma aposta a ser sustentada. De que aposta se trata? A aposta no trabalho por uma causa.
Se falamos do trabalho da transferência como suporte na experiencia analítica, é fácil nos remetermos rapidamente ao Sujeito Suposto Saber e ao amor. Entretanto, a transferência de trabalho, posta como a base na qual se funda a Escola, não se confunde com a transferência na clínica. Esta última pressupõe um Sujeito Suposto Saber, um saber que ex-siste no inconsciente, uma fala endereçada ao Outro, enquanto, na transferência de trabalho, o que está em jogo fundamentalmente é o que o Outro não sabe S(A/), “precisamente porque o Outro não sabe …que algo pode ser dito”[2].
Ou seja, há uma abertura diante desse Outro que não sabe, uma certa sensibilidade em termos do S(A/) na própria entrada para a Escola. É um convite a produção de trabalho e a enunciação, é algo que se relaciona até mesmo com a inibição ao saber que se pode padecer.
A Escola de Lacan, muito diferente de outras instituições de psicanálise, é o lugar onde o que é um analista é sempre uma pergunta a responder. Nesse ponto Lacan inova no funcionamento. Convida a cada um a construir, a inventar o que um analista é, a cada vez, um a um.
Mas quanto ao amor? Podemos falar de amor na transferência de trabalho? Ainda sem conseguir responder a essa questão, é certo que falamos de um laço, e que não se sustenta sozinho, implica os outros, o que abre a pensar em qual o lugar desses outros?
Tanto Mauricio Tarrab, em seu livro El decir y lo real, como Graciela Brodsky em Los psicoanalistas y el deseo de enseñar evocam a apologia dos três prisioneiros de O tempo lógico e asserção de certeza antecipada, para abordar a lógica coletiva que atravessa a política da Escola nessa via de não sem os outros. Para citar a Lacan:
“(…) nessa corrida para a verdade, é apenas sozinho, não sendo todos, que se atinge o verdadeiro, ninguém o atinge, no entanto, a não ser através dos outros.”[3]
Logo, na Escola, estamos sozinhos, cada um com sua causa sim, mas, sem não sem os outros, como no apólogo dos três prisioneiros, já que sem eles, não há como se ter alguma ideia do disco que cada um carrega nas costas. Nessa lógica coletiva que não exclui o um a um, o que o outro diz ou faz, deixa de ser apenas do outro e provoca algo em nós mesmos. Os outros têm seus lugares na formação e mesmo na autorização que cada um faz de si enquanto analista. Sem eles, não há como fazer reverberar algo da verdade da causa que cada um traz consigo, e inclusive, algo da resposta, que é também singular, sobre por que a Escola. Portanto, “prisioneiros como somos – reconheço essa condição, o que me faz sem dúvidas ser mais suportável para os outros. Porque é na borda desse furo que advirto que é não sem os outros que tenho uma chance lógica”[4].
Na Escola, convive-se com uma diversidade de estilos, e de tensões que os agrupamentos inevitavelmente provocam. A aposta na transferência de trabalho é de que esta poderia propiciar não apenas um tratamento do risco institucional de propagarmos um saber mortificado, mantendo em mente de que algo sempre pode ser dito, S (A/) bem como de certa maneira, já que não aposta na uniformidade, de um corte nos impulsos identificatórios que mobilizam a vida dos pequenos grupos.
A experiência de escola implica um lugar onde os analistas se relacionam com os não analistas, os membros com os não-membros, os mais velhos com mais jovens. Compartilha-se o desejo e o trabalho de subjetivar o que cada um encontra em sua análise como causa singular[5]. E, preserva-se um real, sem orientar para a fabricação de um Outro que sabe, e se dá lugar a uma experiência baseada na invenção e em uma investigação permanente.
Para retomar o relato inicial feito por Miller em relação aos panfletos. Um panfleto pode ser considerado só um panfleto. Porém, quando Lacan o entrega a Miller para que o distribua para seus camaradas, temos uma aposta que parece refletir a lógica presente na transferência de trabalho. Oferece a possibilidade de enunciação, cada um a seu estilo. Talvez a transferência de trabalho esteja ali, nesse panfleto, em que é necessário de um lado, oferecê-lo, e do outro, dar provas. Ainda que Lacan[6] tenha dito “fundo tão só como sempre estive na minha relação com a causa analítica”, e se apresente como um sujeito, sozinho, não é sem os outros, e os convida a fazerem o mesmo; quantos panfletos você quer?
[1] MILLER, J-A. El Nascimiento del Campo Freudiano. 1ª ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Ed. Paidós, 2023, p.263.
[2] MILLER, J-A. El Banquete de los analistas. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Ed. Paidós, 2018. p.177.
[3] LACAN, J. O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada (1945). Em: Escritos. Tradução: Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1998, p.211.
[4] TARRAB, M. El decir y lo Real: hacer escuchar lo que está escrito. Olivos: Ed. Grama, 2023, p.39.
[5] BRODSKY, G. Los psicoanalistas y el deseo de enseñar. Olivos: Grama Ediciones, 2023, p.127.
[6] LACAN, J. Ato Fundação (1971). Em: Outros Escritos. Tradução: Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2003, p. 235.