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Acolher

Maria Luiza Rovaris Cidade

Porvires

Créditos: Foto Lina Sumizono – Mostra Cura – 2022 Curitiba

Habitar uma Comissão de Acolhimento em tempos de individualismos é tarefa, no mínimo, inquietante. Falamos tanto no radical da singularidade do que diz um analisante e no trabalho solitário do analista que, quando somos convocadas a um trabalho de acolhimento, perguntamo-nos: seria um trabalho coletivo? Como afirmou Lacan: “Eu poderia dizer que continuei a abraçar esse impossível no qual se reúne o que é para nós, no discurso analítico, fundamentável como real”[1].

Levamos alguns tropeços com impossíveis, cada uma a seu modo – nós da Comissão de Acolhimento da 5a Jornada da EBP-Seção Sul. Sabemos, com Lacan, que o que é da ordem do real pode ser abraçado, pode ser caminhado. Só se abraça e caminha com um corpo.

Afinal, uma jornada é um trajeto que se percorre.

Segundo o dicionário, acolher é:

  1. oferecer ou obter refúgio, proteção ou conforto físico; abrigar(-se), amparar(-se).
  2. dar ou receber hospitalidade; hospedar(-se), alojar(-se).

Em psicanálise, sabemos que a proteção é um ideal perdido; o conforto físico é da ordem do impossível, se pensado como um todo; o refúgio, abrigo e amparo precisam ser inventados, um por um. Já o significante-hospitalidade pode nos evocar um efeito paradoxal: buscando nos afastar da assepsia hospitalar, propomos uma aproximação com a possível gentileza e amabilidade do hospedar. “Seja como for o amor ainda me faz bastante fome”[2].

Não há uma análise sem laço; não há Escola sem transferência de trabalho; e não há transferência sem amor. Podemos dizer, então, que a acolhida tem essa dimensão de enlaçar nossos corpos e experiências, mesmo que algo falte ou reste. Um amor não absoluto ou avassalador, mas que também não convoque apenas a um trabalho. Um amor que enlaça porvires.

Caminhar junto

“imagine isto, ter que contar os meus problemas
cada vez que alguém me perguntar por eles
ao mesmo tempo que não resisto
quando sou abordada assim, com algum afeto
dá vontade de
abrir
o zíper da pele, derramar meus cacos, veja: esta sou eu”[3]

Para que não seja apenas fome, pensamos na dimensão da arte como borda do impossível em nossa Jornada. Abrir o zíper da pele; confrontação de corpos[4]. Escrevemos, comentamos, pulsamos em nossos encontros da Comissão de Acolhimento. Elaboramos playlists: Em uma delas, Cidade Negra já dizia: “estamos afim de saber, afim de saber”[5]. Sobre a verdade, sabemos que ela já implica o discurso. “O que é dito não está noutro lugar senão no que se ouve”[6]. O que estamos afim de saber nessa Jornada?

Que essa Jornada possa nos proporcionar mais que o individualismo imaginário de uma verdade própria. Encontros podem nos evocar o mais-além de uma verdade, de um discurso que aprisiona. Se uma jornada é um trajeto que se percorre, que possamos também caminhar juntos.

“Para onde vão os trens meu pai?
Para Mahal, Tamí, para Camirí, espaços
no mapa, e depois o pai ria: também
pra lugar algum meu filho, tu podes
ir e ainda que se mova o trem
tu não te moves de ti”[7].

Comissão de Acolhimento:

  • Andrea Tochetto
  • Cauana Mestre
  • Juliana Rego Silva (coord.)
  • Maria Luiza Rovaris Cidade
  • Mariana Queiroz

Links para a playlist:

https://open.spotify.com/playlist/4enxW5lBYiTxnDwksQjJxk?si=tAZQzlsHTDG2DEN_PFwcDQ&pi=u-32e50pTxRg-a

 https://open.spotify.com/playlist/0TukyUhDrHxcS8EsrPw6yC?si=zHhVZZe2S3irThm3HWAGnw

[1] LACAN, Jacques. O seminário, livro 19: … ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 213.

[2] CAMPILHO, Matilde. O amor faz-me fome. In: CAMPILHO, Matilde. Jóquei. Lisboa: Tinta-da-China, 2018. p. 117.

[3] BEI, Aline. Pequena coreografia do adeus. São Paulo: Companhia das Letras. 2021.p. 192. Grifos da autora.

[4] LACAN, Jacques. O seminário, livro 19: … ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 220.

[5] Cidade Negra. Falar a verdade. Álbum de 1991: “Lute para viver”.

[6] LACAN, Jacques. O seminário, livro 19: … ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 221.

[7] HILST, Hilda. Tu não te moves de ti. São Paulo: Globo, 2004.

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