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O enigma e a enunciação

Eneida M. Santos (EBP/AMP) – Cartel Fulgurante

EIXO 3: O DISCURSO FAZ DO CORPO UM CORPO

Créditos: Fotografia de Lina Sumizono – c h ãO – Festival de Curitiba – 2023

Partirei de um trecho do texto do argumento de Cínthia no qual ela destaca a expressão “um dizer novo”, como uma interpretação que faz emenda entre o simbólico e o real, para situar a questão do enigma e da enunciação. Uma vez que o ato da enunciação reinaugura esse “novo”, o sujeito do enunciado se vê transformado e o enigma  que o ato contém, daquilo que o causa, pode ser, de certa forma, preservado.

O discurso faz do corpo um corpo, título dado a esse eixo, marca esse encontro traumático com  “a palavra que fere”[1], o choque do encontro da língua com o corpo. Já a enunciação refere-se  a um processo mais articulado e sofisticado da linguagem, mais tardio, vamos dizer assim, com relação a esse choque que o significante produz no corpo. Assim, podemos afirmar que a enunciação percorre o caminho inverso desse choque primeiro? Seria a enunciação o retorno da palavra, quando esse enunciado consegue resgatar o vivo do trauma do choque da linguagem no corpo, fazendo ouvir uma outra voz no texto, diferente da que se expressou no enunciado?

O que é uma enunciação? Não é uma modulação da linguagem, nem o brilhantismo e erudição de um enunciado, nem uma simples inflexão  da fala. Não é um ato performático. Não é também dizer a verdade, porque com Lacan podemos afirmar que dizer a verdade é intencional e elimina por isso a enunciação em proveito do enunciado.

Com Lacan, podemos também afirmar que existe essa discordância fundamental entre o enunciado e a enunciação. Ao contrário da afirmação de Beneviste e Jackobson, para quem a  enunciação é um ato que está em continuidade com o enunciado, para Lacan pode haver enunciação sem enunciado e enunciado sem enunciação.

Lacan, ao longo de seu percurso, vai  se tornando joyceano. Com Joyce, ele constata que alguma coisa que aparece  no significante, por meio do dizer,  pode produzir um eco no corpo daquele que fala e que esse significante se presta aos avatares dos equívocos e homofonias. Com Joyce, pode afirmar que a enunciação é uma cadeia significante que parasitou a cadeia significante do enunciado e que, mais ainda, toda a dimensão da linguagem se torna  parasitária para o sujeito. As palavras lhe são impostas! Joyce, escritor  por excelência do enigma  teria feito do enigma uma função reparadora de seu eu[2].

Em Ulisses, na fantástica tradução para o português  de Caetano Galindo[3],  Stephen, o professor Stephen, propõe a seus alunos como enigma (um enigma muito conhecido para o leitor de Joyce) uma charada, uma enunciação não um enunciado[4]

“O galo cantou,

O céu azulou,

E os sinos de bronze

Bateram as onze.

É hora do incréu

Seguir para o céu.”[5]

Com a garganta coçando, diz Joyce, Stephen dá para o enigma a seguinte resposta: “A raposa enterrando a avó embaixo de um azevinho”[6]

É uma resposta completamente besta, diz Lacan, é o mesmo que nada. Aqui a  enunciação remete o pouco de sentido a outro pouco de sentido.  Ela não encontra o enunciado, só encontra o nó da não relação sexual e é por isso que dizemos que Lacan é joyceano, porque seu  estilo, tal como em Joyce, é enigmático.

Para terminar, acho importante destacar a diferença que podemos traçar entre o enigma e o mistério. Se o significante marca o corpo, fazendo surgir um falasser, isso é um mistério, o mistério do falasser (como lembrou Juan em nosso cartel). A experiência dos efeitos de enunciação que surgem em uma análise, por meio das palavras “chistosas”, mostra que o enigma pode ser uma transformação desse mistério do falasser em significantes cifrados pelo equívoco, verdadeiros chistes. Não será com isso que nos deparamos ao lermos admirados o título intraduzível do seminário 24 de  Lacan: L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre ?


[1] Miller, J.A. A palavra que fere. Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de psicanálise. São Paulo: Eólia, n. 56/57, jul. 2009.
[2] Lacan, J. O Seminário, livro 23, O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 150.
[3] Joyce, J. Ulysses. São Paulo: Companhia das letras, 2022.
[4] Ibid. Lacan 2007, p. 69.
[5] Ibid. Joyce 2022,  p. 49.
[6] Ibid. Joyce 2022, p. 50
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