#04 - SETEMBRO 2024
A Psicanálise em extensão e a política
Nancy Greca Carneiro
EBP/AMP
A mim, interessa o impacto político da Psicanálise na vida cotidiana desde Freud, em todos os âmbitos da vida social, reconfigurando em seu torno os usos e costumes. Uma recrudescência social do recalque foi necessária para que se produzisse, naquele contexto, o que se deve chamar uma liberação da fala.
Em As perspectivas futuras da Psicanálise (1910)[2] Freud se pergunta, alertando para seus efeitos, se deveria renunciar a descobrir o sentido secreto das neuroses, sacrificando um descobrimento científico e suas consequências práticas. Previa uma Aufklärung, o triunfo das luzes que resultaria numa “tolerância até então inédita das pulsões”.[3]
Miller chamou, neste mesmo texto: É o acontecimento Freud! E observo que, em seguida, ao apresentar Lacan, em sua audácia de não ser como todo o mundo, Miller diz: Existe o acontecimento Lacan! Um deslizamento que nos aponta a direção ao impossível, a um modo de presença do analista quando se trata do inconsciente real.
“O ICC nos tem mudado o mundo” diz Lacan, cita Miller em Lacan e a Política. E o fez pela via dos costumes e não pela via do poder, ao que Lacan, pós acontecimentos de 1968, expressa nos quatro discursos, sublinhando que “não se trata de sussurrar nos ouvidos do príncipe”.[4]
Depois de seu curso “Os usos do lapso” (1999)[5], onde Miller trabalhou o tempo epistêmico como efeito do que pode ser articulado pelo significante, e o tempo erótico como um laço com o objeto a, no qual se articulam significante e gozo, em “O lugar e o laço” (2000 – 2001) Miller destaca um lugar fundamental sobre o qual Lacan pôs acento, lugar de despejo, depósito de lixo: “o analista é um lugar onde se deposita um resto e neste lugar se estabelece um laço com o objeto a, um laço possível com a psicanálise. Assim o analista está no laço e é também um lugar”.[6]
Lembro uma fala de Eric Laurent na Jornada em Belo Horizonte “Há algo de novo nas psicoses?” Se todas as Bibliotecas desaparecerem e um analista seguir existindo, a psicanálise seguirá existindo. Se todas as bibliotecas existirem e os analistas desaparecerem, a psicanálise não existirá. Aponta aí o laço do analista com a psicanálise, ao que ele é como lugar.
Sou de um tempo em que no consultório de um analista havia duas portas, uma para se entrar e outra para sair, cuidados para que um analisante não visse o outro. Imperava a figura do analista antissocial e apolítico.
Em sua Proposição de 9 de outubro, Lacan afirma “… é no próprio horizonte da psicanálise em extensão que se ata o círculo interior que traçamos como hiância na psicanálise em intensão”.[7] Ao fundar sua Escola como um lugar para que analistas estivessem à altura de fazer existir a Psicanálise no mundo, poderíamos pensar que é a presença do analista no mundo, um ato político? Seria a presença do analista na cena do mundo, uma abertura possível para que se suspenda, também na vida cotidiana, nas cidades, a repetição própria ao inconsciente e este irrompa em sua função de interpretação?
Como passar a experiência do analista, do analisante ao campo do político nas Instituições?
[1] Miller, J. A. Política Lacaniana. – 2 a ed.compediada – Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Colección Diva, 2017.
[2] Freud, S. As Perspectivas Futuras da Terapia Psicanalítica (1910). In: Obras Completas, vol.11, p.127. Trad. Coord. Jayne Salomão. Rio de Janeiro. Imago, 1976.
[3] Miller, J. A. Punto Cenit: política, religión y el psicoanalisis. 1ª ed.Buenos Aires: Colección Diva, 2012, p. 16.
[4] Ibid Miller 2012: p. 17
[5] Miller, J. A. Los usos del lapso. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller.1ª ed. 2ª reimpressão. Buenos Aires. Paidós, 2010
[6] Miller, J. A. El lugar y el lazo. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. 1ª ed. Buenos Aires: Paidós, 2013
[7] Lacan, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola in “Outros Escritos”. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed. 2003.