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A duração do ato

Cauana Mestre
Lygia Clark, “Composição” (1953)

“Só há uma duração: a do ato”. Encontrei esta frase em um dos escritos de Lygia Clark, expostos na mostra da Pinacoteca que reuniu vários momentos da extensa obra da artista. No texto escrito à mão, Lygia comenta uma de suas obras da década de sessenta, Caminhando, momento em que ela decide romper com a ideia de uma separação total entre sujeito e objeto, recusando a rígida noção de “objeto arte”.  A artista constrói uma fita de Moebius e vai cortando-a recorrentemente, no sentido do comprimento, até que o atalho chegue ao fim. A importância reside, absoluta, no ato: a arte é o movimento de cortar e não a fita como objeto em si. “Se eu utilizo uma fita de Moebius para essa experiência é porque ela quebra os nossos hábitos espaciais: direita–esquerda, anverso-reverso etc. Ela nos faz viver a experiência de um tempo sem limite e de um espaço contínuo”, explica Lygia, em 1964.

À mesma época, em outro continente, Lacan também se serve da fita de Moebius — que se torna, então, o primeiro marco da relação consistente da psicanálise lacaniana com a topologia. A fita subverte a representação comum do espaço e anuncia o aceno de Lacan à matemática, terreno onde o limite é o ilimitado, campo do infinito. Não há avesso nem direito, o dentro se confunde com o fora, o Outro é próprio e é sempre numa exterioridade “que se identifica esse algo pelo qual o que me é mais íntimo é, justamente, aquilo que sou obrigado a só poder reconhecer do lado de fora” (LACAN, 2008, p. 219).

Quando Lygia construía suas esculturas neoconcretas da série Bichos para tensionar O dentro é o fora e O antes é o depois, Lacan já havia proposto o termo extimidade, deslizando do infamiliar freudiano. Como dizer que o mais íntimo é êxtimo sem colocá-los em comparação direta? Como esclarecer que não são sinônimos ao mesmo tempo em que não são excludentes? As perguntas dialogam com aquelas com as quais Lacan esteve às voltas ao longo de todo seu ensino, sobretudo nos últimos anos: como inserir, na experiência de análise, aquilo que a palavra não alcança? Como circunscrever o impossível? Volto à frase de Lygia Clark: “só há uma duração: a do ato”. Neste ponto do caminho se encontram a artista e o psicanalista – e então a própria arte e a própria psicanálise, como dois territórios litorâneos que, como escreve Lacan em Lituraterra (1965), são heterogêneos e um funciona de fronteira para o outro, ainda que se interpenetrem. O ato do analista é a única duração que se escreve da experiência analítica justamente por ressoar na única verdadeira substância que a psicanálise reconhece, o gozo.

Miller, na conferência Ler um sintoma, apresentada no Congresso da NSL em 2011, nos lembra de que Lacan vai além dos restos analíticos freudianos; aí onde Freud se detinha, Lacan nos convida a avançar, pois o resto que insiste à interpretação é o que, no sintoma, é fora de sentido — o real por excelência. Ler um sintoma, portanto, é privá-lo de sentido, equivocá-lo. “A interpretação como saber ler visa reduzir o sintoma à sua fórmula inicial, quer dizer, ao encontro material de um significante e do corpo, ao choque puro da linguagem sobre o corpo”. O ato do analista, como aquilo que ressoa no corpo que goza, toca o resto enquanto isso que ele é: a origem do falasser. O ato é a aposta radical na experiência da análise; essa que, ao não recusar a contingência e ensinar que dela é possível fazer bom uso, pode desaprisionar os corpos.

Este texto é fruto da experiência de habitar a Comissão de Acolhimento da 5ª Jornada da Seção Sul, Discursos e Corpos: a causa do dizer, coordenada por Juliana Silva e composta também pelas colegas Andrea Tochetto, Maria Luiza Rovaris Cidade e Mariana Queiroz. Nossa comissão pensa o espaço-jornada como um espaço-estético que inclui os corpos e os laços de trabalho – e que inclui também o ressoar da música no corpo, contemplado na segunda playlist construída por Maria Luiza, disponível no Spotify pelo link: https://open.spotify.com/playlist/0TukyUhDrHxcS8EsrPw6yC?si=6lUzcWXZT7WFoNhjhtqanw&pt=937bdbf975b8dd58651224958c37ab3b


LACAN, Jacques. Lituraterra. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., [1965] 2003. 15-29.
______. O seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., [1959-60] 2008.
MILLER, Jacques Alain. Ler um sintoma. Londres, 2011. Texto estabelecido por Dominique Helvoet, disponível em: https://ebp.org.br/sp/ler-um-sintoma/
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