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Som e silêncio

Marcia Stival
Membro EBP/AMP

O interesse pela complexidade do universo sonoro me leva da música dodecafônica aos fundamentos da música destacados pelo som, ruído e silêncio.  Ou seja, de um sistema que apresenta inovações na organização das notas musicais (dodecafonismo) para a música de John Cage, que envolve a improvisação e o acaso. Uma base para lançar questões que instiguem a pensar sobre a escuta e interpretação analíticas.

“Na música, a liberdade de representação já sublinhada por Schopenhauer, o afasta cada vez mais de modelos discursivos e narrativos. A música não é descritiva … [e] a revolução do século XX é a da emancipação da harmonia e da tonalidade.”[1] As dimensões que o campo musical abre com o dodecafonismo tinham em sua base produções sem um centro tonal[2].

Um dos maiores compositores do século XX, pioneiro da “música aleatória”, foi John Cage. Numa conferência que realizou em 1957, Cage destacou que música é  “um jogo sem propósito, que é uma afirmação da vida – não uma tentativa de trazer a ordem no caos nem sugerir aperfeiçoamentos na criação, mas simplesmente um jeito de acordar para a própria vida que estamos vivendo”[3]. Tendo como base a arte de Cage, “acordar” comportaria tocar o corpo a partir do suporte material da linguagem, reduzido a alguns elementos sonoros?  

Cage destaca que “o silêncio absoluto não existe”, uma vez que sempre haverá um ruído, uma manifestação sonora. É com essa premissa que a composição Quarteto de Cordas em Quatro Partes aponta para a poética do silêncio, na qual ele se utiliza dos clusters[4]. Cage começou a usá-los executando as mesmas notas num mesmo instrumento. Isso ocorria sempre que uma nota da melodia surgia em determinada oitava. Segundo Pritchett (2014), “nas sequências incomuns criadas através das vozes estáticas nas combinações dos agregados (clusters), ao tratar os materiais em uma espécie de modelo sistematizado, Cage descobria uma ‘não-expressividade’, pelo menos no que diz respeito à harmonia.”[5] Assim, a própria trajetória deste compositor ganhava um novo direcionamento. O silêncio marcado na obra Sonatas e Interlúdios favorecia um efeito de tranquilidade, segundo Cage. No entanto, o silêncio apresentado na composição Quarteto de Cordas em Quatro Partes silenciava a harmonia sem tratar-se de um silêncio físico. Como Cage chegou a dizer a seus pais, “sem na verdade usar o silêncio, eu gostaria de elogiá-lo.”[6]

Se “as ressonâncias… [advindas] da obra de arte… são necessárias para o entendimento da nossa experiência”[7], conduzo-me a refletir que pela via do que se repete, mas não se articula com a harmonia presente; o artista toca com o som o que silencia simbolicamente. Então, seria possível localizar no que se apresenta e não faz cadeia um material para a escuta? Ou seja, é possível acusar recebimento do que silencia apesar de ser emitida pela voz, tal como palavras que tocam o corpo, se houver uma interpretação? No que isto pode contribuir para refletirmos sobre a escuta analítica?

Mantenho em aberto essas questões, na intenção de que repercutam como um convite para a próxima preparatória da Jornada da EBP-Seção Sul.


[1] COTTET, S. Musique contemporaine: La fuite du son
[2] “Notas individuais atuam como elemento melódico capaz de expressar uma tonalidade, adquirindo deste modo sua função tonal. Os acordes por sua vez, expressam sua função através da sua fundamental. Ambos elementos, notas individuais e acordes, são incluídos na noção de região tonal que considera segmentos escalares para estabelecer a relação entre duas ou mais tonalidades.” DUDEQUE, NORTON SCHOENBERG E A FUNÇÃO TONAL In:http://www.rem.ufpr.br/_REM/REMv2.1/vol2.1/Schoenberg/Schoenberg%20e%20a%20Funcao.html#2b
[3] CAGE, J. Wikipedia
[4] Clusters: clusters (cachos de sons), agregados sonoros produzidos no piano, que Cage herda do contato com Henry Cowell. Esses clusters geralmente envolvem o toque simultâneo de teclas brancas ou pretas vizinhas. In: Wikipedia https://pt.wikipedia.org/wiki/Cluster_(m%C3%BAsica)#:~:text=Um%20cluster%20um%20agrupamento%20de,e%20s%C3%A3o%20separados%20por%20semitons.
[5] PRITICHETT, JAMES. Opening the doors into emptiness: the musical-spiritual journey of John Cage. 2014. Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2014.
[6] PRITICHETT, JAMES. Opening the doors into emptiness: the musical-spiritual journey of John Cage. 2014. Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2014.
[7] LACAN, J. A coisa freudiana In: Escritos Rio de Janeiro: Zahar E., 1998, p.435.
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