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A  arte de bem ouvir e o acontecimento imprevisto

Cleudes Maria Slongo
Membro EBP/AMP

Recolhido em seu silêncio o analista não se pronuncia. Espera e se cala, para que o outro – único sujeito em jogo no dispositivo – fale. Para tanto, deve poder suportar sua posição de objeto de um vazio para que se produza um saber na experiência analítica e que ao final, no momento de concluir, possa ser depurado. “O calar-se contém um valor tático e estratégico na direção do tratamento; é um modo de deixar seu curso ao trabalho do inconsciente”[i]. É também o silêncio da prudência, da discrição que alcança seu limite no encontro com o instante oportuno ou, como diria Freud, no instante preciso em que o leão salta.

A análise se institui pela ética do ato analítico. Ato solitário que quebra o silêncio do analista quando o inconsciente se faz ouvir por meio de uma formação (um lapso, um chiste). O primeiro lugar ocupado pelo analista é o de ser a escuta privilegiada que tem de pontuar de modo diferente o discurso corrente. Por isto Lacan ressalta que a arte de bem dizer equivale à arte de bem ouvir.

Em consonância com a clínica que se depreende do último ensino de Lacan e que tem como princípio ‘perturbar a defesa’, a escuta do analista deve criar as condições para que se acenda “a chispa do inconsciente” entendido como o encontro com o incalculável, com o imprevisto, quer dizer, com algo do real em sua conotação mais analítica possível[ii].

Consentir com o acontecimento imprevisto é a grande aposta que se coloca ao analista, no um por um, de sua prática diária, nos tempos que correm. Isto é tão irrefutável a ponto de Bassols propor que a sessão analítica seja, ela mesma, um acontecimento imprevisto dentro da regularidade inerente ao seu desenvolvimento. Esta seria uma outra forma de definir o que Freud chama atenção flutuante para situar a posição do analista no dispositivo analítico.

De acordo com esta perspectiva a prática da psicanálise consiste em “conduzir a trama do destino do sujeito da estrutura aos elementos primordiais, fora da articulação, quer dizer, fora do sentido […]. Se trata, pois, de conduzir o sujeito aos elementos absolutos de sua existência contingente”.

Esta divisão entre a estrutura e o acaso, entre a estrutura e o acontecimento imprevisto, muda a função da interpretação que já não consiste em contornar um sentido manifesto para revelar neste, outro sentido oculto. A interpretação aponta no sentido de desfazer a articulação do destino para desconsistir, para alcançar o fora de sentido. Assim sendo é uma operação de desarticulação. Esta vertente aberta pelo Seminário 20, Mais Ainda, e que culmina no conceito de sinthome – que designa em sua singularidade a substância gozante –, se situa para além de toda articulação significante que está condicionada, não pela linguagem, senão, pela alíngua[iii].

A sessão analítica não é algo determinado de antemão. Não há existência estabelecida da sessão antes que a experiência de análise se funde. Não há um protocolo a ser seguido, muito menos, um enquadre prévio. Do mesmo modo, o inconsciente só pode se realizar no espaço de um lapso e em cada sessão.

Assim como o psicanalista deve dar lugar ao real como impossível de saber por antecipação em uma sessão, também é preciso que seja receptivo aos acontecimentos históricos que se impõe no mundo e que podem exigir uma mudança de paradigmas.


[i] GODOY, Claudio. Taceo no es sileo. La sesión analítica. Las lógicas de la cura y el acontecimiento imprevisto. El Caldero de la Escuela, nº 75, marzo-abril/2000, p. 24.
[ii] BASSOLS, Miquel. Preguntas e Respuestas. La sesión analítica. Las lógicas de la cura y el acontecimiento imprevisto. El Caldero de la Escuela, nº 75, marzo-abril/2000, p. 12.
[iii] MILLER, J.-A. De la contingencia a la articulación. Clínica del sinthome. Sutilezas analíticas. Los cursos psicanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires, Paidós, 2014, p. 89-90.
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