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Acontecimento litoral e a interpretação

Leonardo Fernandes Mendonça[1]

“os psicanalistas fazem parte do conceito do inconsciente, posto que constituem seu destinatário”[2]

Um rasgo, um furo e um não saber me rodeia como um fantasma que sussurra no meu ouvido que os conceitos e a articulação clínica dos temas: interpretação e letra são uma condição e orientação para que algo parecido com uma análise e um analista possa ocasionalmente fazer-se presente na minha clínica. Ocasionalmente, como um acontecimento. Dando ouvidos ao sussurro adentrei na caminhada deste cartel e descobri que acontecimento diz tanto da letra como da interpretação.

Muitas vezes escutei e li que, para que haja uma análise e a operação da interpretação, existe a condição de um acontecimento chamado transferência, ou seja, tomar o analista no lugar de suposto saber, mas não da pessoa do analista, do “ele sabe”. Mas da crença no saber do inconsciente, de que há algo escrito, que pode ser decifrado, traduzido pela interpretação do analista e até mesmo pelo analisante, que diga alguma verdade sobre os sofrimentos do sujeito.

Apesar da importância dessa crença no inconsciente é preciso estar advertido que quando se trata da letra e do gozo atrelado a ela, é preciso cair a interpretação como tradução, para que a interpretação poética (assemântica, apofântica) possa fazer-se presente. Eric Laurent assinala que o “psicanalista só pode acertar na mosca se ele se mantiver à altura da interpretação que opera o inconsciente, já estruturado como uma linguagem. É preciso dar todo o lugar à barra que separa as duas dimensões e permite a topologia da poética. A função poética revela que a linguagem não é significação, mas ressonância, e destaca a matéria que, no som, ultrapassa o sentido.”[3]

Miller desenvolve em Ler um Sintoma, que “entre as formações do inconsciente está o sintoma. Porque colocamos o sintoma entre estas formações do inconsciente, senão porque o sintoma freudiano também é verdade. Damos-lhe um sentido de verdade, o interpretamos. Mas, ele se distingue de todas as outras formações do inconsciente por sua permanência.”[4] Me parece oportuno destacar o sentido e a permanência.

É pela via do sentido que a interpretação freudiana – que ainda se faz presente nas análises atuais – joga sua partida. Momento importante em que o analisante pela via da transferência passa a acreditar no inconsciente, e que existe uma verdade que pode ser traduzida, e interpretada, que está escondida, que permeia ocultamente os atos falhos, os sonhos, e que há algo a ser interpretado em seu sintoma. Certa vez, ainda nas entrevistas preliminares, uma paciente comenta: “é tão bom vir aqui e falar, pois assim eu me escuto e percebo algumas coisas”. Sabendo sem saber no “me escuto” já estava uma certa alfabetização dos meandros da leitura e escrita da perspectiva psicanalítica, ou seja, de uma outra dimensão da interpretação, de uma interpretação que caminha em direção à letra.

Podemos tomar por uma licença poética a permanência, pela repetição e dentro de repetição deixarmos subjacente o termo fixação. Me explico. Aprendemos em Lacan que o inconsciente é estruturado como linguagem, e consequentemente suas manifestações estão na ordem do simbólico, do significante. A dimensão do sintoma que “quer dizer algo”, interpretável, pelo sentido (S1 – S2) encontra seu limite do interpretável, do associável. Mesmo pela operação do trabalho analítico existe algo do sintoma que não cede, que permanece, que insiste em se repetir. A esses pontos dos sintomas que ainda persistem Freud chamou de restos sintomáticos. Para Lacan, ele se chocou com o real do sintoma. E é justamente o real do sintoma que se relaciona com a sua permanência, repetição, fixação.

Patrício nos explica em seu livro El autismo, entre lalengua y la letra – fazendo referencia à Lacan – quanto a função do sintoma, que em sua forma matemática seria f(x), sendo x, o que do inconsciente pode se traduzir em uma letra. Do enxame de S1, “un S1 se recorta […] escribiéndose salvajemente como síntoma, como aquél destinado a repetirse […] Ese Uno que se escribe de modo salvaje adquire la función de letra”[5].

O Um da letra localiza o gozo. Localização responsável pelo que chamaremos de modo de gozo, ou seja, o ponto responsável pela repetição do sintoma, que muitas vezes é chamado de letra do sintoma. É da ordem de um acontecimento. Dito de outra forma, “o gozo do sintoma testemunha que houve um acontecimento, um acontecimento de corpo”[6], da incidência do significante no corpo.

Para operar ao nível da letra é o “funcionamento mesmo da interpretação que muda e passa da escuta do sentido à leitura do fora de sentido”[7]. Uma leitura que orienta, “aponta para a materialidade da escritura, quer dizer, a letra enquanto que ela produz o acontecimento de gozo que determina a formação dos sintomas.”[8]


REFERÊNCIAS
BAYÓN, Patricio Álvarez. El autismo, entre lalengua y la letra. 1ª Ed., – Olivos: Grama Ediciones, 2020.
LAURENT. Éric. A interpretação: da verdade ao acontecimento. In. Curinga n50, EBPMG, Jul/dez 2020
MILLER, J.A. Ler um sintoma. Disponível em: https://ebp.org.br/sp/ler-um-sintoma/
[1]Texto fruto do momento de concluir do Cartel – Percurso da Letra, tendo com Mais-um Maria Teresa Wendhausen.
[2]LAURENT. Éric. A interpretação: da verdade ao acontecimento. In. Curinga n50, EBPMG, Jul/dez 2020, p.169.
[3]Ibid.,p.169
[4]MILLER, J.A. Ler um sintoma. Disponível em: https://ebp.org.br/sp/ler-um-sintoma/
[5]BAYÓN, Patricio Álvarez. El autismo, entre lalengua y la letra. 1ª Ed., – Olivos: Grama Ediciones, 2020, p.84
[6]MILLER, J.A. Ler um sintoma. Disponível em: https://ebp.org.br/sp/ler-um-sintoma/
[7]Ibid
[8]Ibid.
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