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Percursos da letra na ficção neurótica

Gracy Amandio Pedro

Ao longo deste Cartel, nas ricas discussões sobre a letra fui causada pelo desejo de saber sobre o trajeto da letra na ficção neurótica. Desenvolvi então algumas hipóteses em torno deste percurso.

Tomo aqui a palavra ficção, pois, Lacan em Passagem ao ato e acting out, cita a palavra ficção em dois momentos: “a cena do Outro, onde o homem como sujeito tem de se constituir, tem de assumir um lugar como portador da fala, só pode portá-la numa estrutura que, por mais verídica que se afirme, é uma estrutura de ficção. (…) Freud se recusa a ver na verdade, que é a sua paixão, a estrutura de ficção como algo que está em sua origem.”

A partir da leitura deste texto, entendo que o que Lacan aponta como verdade não me parece ser a “verdade verdadeira” que Freud associava ao inconsciente. Lacan quer dizer que a verdade do sujeito é ao mesmo tempo a mentira sintomática formada pelo inconsciente, ou seja, uma ficção. O inconsciente como uma verdade está estruturado por uma ficção, assim como a ficção neurótica é formada a partir de resquícios do inconsciente.

Ainda que a ficção não seja um conceito psicanalítico, a noção de que a neurose é uma espécie de ficção, já estava em Freud, em 1899, no texto Lembranças encobridoras, quando ele explica que as construções inconscientes que uma pessoa produz em torno de suas lembranças são como trabalhos de ficção.

Como uma estrutura simbólica a ficção neurótica, formada pelo inconsciente, é representada por um sistema de significantes. Das possíveis formas de ler a letra na ficção uma delas é em sua dimensão de significante. Lacan refere em “O seminário sobre a carta roubada”, que uma das utilidades da letra/carta é a de transmitir uma mensagem. Nesse caso, a letra estaria relacionada ao significante à medida que, associada a outros significantes, produziria um efeito de sentido, uma mensagem. Na ficção essa função pode se evidenciar quando a letra como significante transmite uma mensagem do inconsciente passível de interpretação pela via do sentido. Ou seja, a letra aqui pode servir para revelar uma formação do inconsciente que de alguma forma explique a formação da própria ficção.

A letra como significante e associada à estrutura simbólica do sujeito, também diz sobre a posição que o sujeito assume em uma ficção, como a Rainha no conto de Poe, que a partir da presença da carta, passa a assumir um pacto simbólico, mesmo que não queira, como desenvolveu Lacan em “O seminário sobre a carta…”.

Porém, os efeitos da letra na ficção vão para além de sua função mensageira e Lacan evidencia outro aspecto da letra também em “O seminário sobre a carta…”. A letra na ficção neurótica possui, por outro lado, dimensão material, assim como a carta no conto de Poe que por sua materialidade pode ser manipulada e utilizada revelando a sua dimensão de objeto. A letra em sua materialidade diz do “resto”, o “dejeto” que está em questão na mentira sintomática do paciente.

Nessa função, pouco importa o significado da letra, já que a presença de sua materialidade pode causar um efeito por si só na ficção. Esta particularidade da letra evidencia a condição em que o sujeito se encontra diante de sua invenção onde, por um lado, a letra possibilita que ele dê um sentido para a sua narrativa, mas, por outro, também faz com que se depare com a impossibilidade da associação significante a partir do seu caráter de objeto.

Lacan em Lituraterra vai além e associa a materialidade da letra ao gozo. O restinho que se presentifica na ficção pela letra, acolhe gozo. Esse restinho Lacan menciona no Passagem ao ato…, é o que, segundo ele, faz a mentira sintomática. A letra presentifica aí esse resquício de gozo que envolve o sujeito numa posição que ocupa na ficção, inconscientemente. A forma da ficção, o sentido pelo qual a ficção neurótica tenta operar se produz em torno do gozo que se presentificará com a letra. Assim, para ficção, a letra não serve apenas como forma de possibilitar um sentido, mas ela também possui caráter de gozo que se presentifica de forma literal e material.

Ram Mandil em A letter, a litter, refere que Lacan faz em Lituraterra um corte entre a noção de significante e letra. Isso possibilita compreender que é a letra em sua materialidade o que vai permitir localizar o gozo do sujeito, no real, e não o significante, que está associado ao simbólico.

Ainda em Lituraterra, Lacan possibilita articular a letra nesse litoral entre dois territórios distintos, o do simbólico e do gozo. Ram em A letter, a litter conclui que nesses dois campos não há como não haver uma descontinuidade. Nesse sentido, a letra também vai operar como borda do furo do saber.

Enfim, a função da letra como borda do furo no saber me faz concluir que para capturar o gozo que a letra revela à ficção neurótica, é preciso fazer desestruturar a cena do Outro, invocando o fracasso da ficção.

Como o que se dissolveu da ficção, a letra que decanta o gozo não apenas possibilita que o sujeito esteja admitido do seu modo de gozar, mas também possibilita um saber fazer com o gozo, um tecer de uma narrativa própria, não alienada ao Outro.


REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. Lembranças encobridoras. Volume III Primeiras Publicações Psicanalíticas, 1893/1899.
LACAN, Jacques. O seminário sobre “A carta roubada”. Escritos, 1901/1981.
LACAN, Jacques. Lituraterra. Outros Escritos, 1901/1981.
LACAN, Jacques. Passagem ao ato e acting out. O Seminário livro 10 A angústia, 1962/1963.
MANDIL, Ram. A letter, a litter. Os Efeitos da Letra Lacan leitor de Joyce, 2003.
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