Juliana Rego Silva[1] Não existe Outro do Outro, não existe a verdade sobre a verdade.…
Notas sobre exterioridade íntima e a posição do analista
Adriana Rodrigues (EBP/AMP)
O início da prática clínica. Foi assim que recebi o instigante convite para participar como Mais Um desse cartel. Os debates estavam atravessados pelas questões sobre a autorização do analista, manejo da associação livre, transferência, travessia da fantasia, tempo lógico, a relação com o saber-não saber, a escuta, a ética em psicanálise, a posição do analista. Tempo marcado pelo trabalho em torno do que seriam as particularidades do início da prática clínica. A virada veio quando uma das cartelizantes elaborou e verbalizou um impasse que era dela, mas que atravessava todo o cartel, com a seguinte frase: “cada paciente novo é um início de clínica pra mim”. A partir daí, de forma muito contingencial e sutil, passou-se para um segundo tempo e foi possível nomear o cartel com uma pergunta: “um analista se vira com o quê?”. O verbo “virar”, surgiu trazendo o sentido de “manejo”, mas destacando também um ponto de virada localizado no desejo e possibilidade de assumir a função de praticante da psicanálise. A pergunta como título – um tanto irreverente – condensou também um traço particular desse cartel: encontros marcados por perguntas cirúrgicas sobre os fundamentos da prática clínica, que me ficavam ecoando ao longo dos dias seguintes, abrindo “buracos na cabeça”, citando Miller (1968) ao descrever sobre o efeito de formação esperado e, em alguns momentos, produzido por um cartel.
Começamos as leituras pelo texto inaugural do primeiro ensino de Lacan – Função e campo da fala e da linguagem (LACAN, 1953). E ali fui capturada por um trecho de uma frase muito conhecida, justamente porque nela Lacan faz a famosa convocação para que o analista esteja à altura da subjetividade da sua época, e me tocou especificamente no seguinte ponto: “como poderia fazer de seu ser o eixo de tantas vidas quem nada soubesse da dialética que o compromete com essas vidas num movimento simbólico. [?]” (p. 322). Na época eu estava às voltas com uma pontuação feita em supervisão sobre o analista na posição de extimidade, e me interessou pesquisar o que Lacan quis dizer com “seu ser”, referindo-se ao analista. Evidentemente não se trata do ser como sujeito, mas enquanto função. Miller (2020) afirma que desde este primeiro texto até o final do primeiro ensino, Lacan trabalha com a perspectiva de que o desejo constitui, vai forjando, o ser do sujeito. Miller avança um pouco mais e propõe a definição de que o ser, é o desejo. Extraio daí o entendimento de que o ser do analista é o desejo do analista.
Sabemos que é o desejo o que sustenta o trabalho contínuo de formação, como Lacan aponta no mesmo trecho: “a obra do psicanalista […] exige uma longa ascese subjetiva, e que jamais será interrompida, não sendo o fim da própria análise didática separável do engajamento do sujeito em sua prática”. (LACAN, 1953, p. 322).
Esse ponto do inseparável (para além de uma discussão com a IPA sobre a análise didática) aparece também na segunda parte da frase onde Lacan enfatiza a necessidade de um saber sobre a “dialética que compromete [o analista] com essas vidas num movimento simbólico”, como condição (inseparável) para se propor a operar desde este lugar. Argumento que faz lembrar Freud ao afirmar que “a psicologia individual é também, desde o início, psicologia social” (1921, p. 14). Lacan convoca aqui o analista a sair do conforto do mais íntimo, para o confronto, em certa medida, com o mais exterior, os outros discursos, as outras cenas que atravessam o sujeito, a fim de não ser arrastado pela espiral de sua época (LACAN, 1953). Assim, o desejo que sustenta a “obra”, no sentido laborioso do trabalho ininterrupto da formação do analista, vai se tecendo na complexidade desses meandros – tanto na condição de analisante, como de analista – tateando os extremos dum continuum, que Lacan nomeou extimidade.
O neologismo foi criado a partir do jogo entre as palavras francesas “intimité” e “extérieur”, resultando na contração “extimité” – inicialmente para dizer do inconsciente em sua condição de “exterioridade íntima” (LACAN,1959-1960, p. 173). Mas para além de dizer do inconsciente, ou da condição de analisante, o neologismo lacaniano localiza também a posição do analista, que apesar de ocupar um suposto lugar de intimidade, fica fora da cena, embora não em oposição a intimidade ou numa condição de exterioridade pura. Segundo Miller, “o termo extimidade se constrói sobre a intimidade. Não é seu contrário, porque o êxtimo é precisamente o íntimo, inclusive o mais íntimo”. (2010, p. 14). A complexa lógica da extimidade permite ir além das formas binárias de pensamento para evidenciar nesse trânsito moebiano justamente o que vacila entre uma posição e outra. Trata-se de localizar nisso que vacila, ou neste ponto de tensão, uma aposta de que possa se produzir ali uma torção. É da posição de extimidade que “se vira” um analista no consultório, num cartel ou na cidade?
Nas minhas primeiras anotações sobre o que escutei nesse cartel escrevi: “me parece que as questões se constituem numa perspectiva clínico-política”. Agora, ao fim desse pequeno percurso, tiraria o hífen e abriria questões ou tensões sobre essas diferenças, sem demasiadas ideias de grandeza, como disse Miller: “O ser do analista é isto: um instrumento, nada mais que isso, é algo que alguém toma e se analisa com esse instrumento. E nossa arte é saber nos prestarmos a isso, sem demasiadas ideias de grandeza”. (MILLER, 2008, p. 79). Sem muitas idealizações, mas sem perder de vista a perspectiva do novo como efeito de surpresa e de atualização do desejo do analista, afinal “cada paciente novo é um início de clínica”.