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REBOTALHOS DEZ

O sujeito trans entre a clínica e a política

Gustavo Ramos da Silva[1]

No último dia 8 de setembro tivemos mais uma preparatória a II Jornada da Seção Sul da Escola Brasileira de Psicanálise “Falar sobre o que não existe. Do gozo do sentido às bricolagens possíveis”. Dessa vez a atividade se centrou no eixo 3, intitulado “Subjetividades contemporâneas: o real do gozo e a trama dos discursos”, escrito por Nohemí Brown. Desse modo, tendo como base o eixo clínico e político, Oscar Reymundo, coordenador da mesa, convidou Blanca Musachi e Eliane Costa Dias – todos integrantes do Observatório de Gênero, Biopolítica e Transexualidade da FAPOL – para falarem um pouco desse entrelaçamento.

A atividade foi nomeada “O sujeito trans e a psicanálise: uma parceria possível”, e logo na abertura Oscar pontua que o trabalho do analista consiste em construir uma parceria de trabalho com um sujeito que apresenta um mal-estar ou um impasse na vida, gerando angústia e sofrimento; ele quer falar sobre isso e, principalmente, ser escutado sobre esse ponto. Esse funcionamento está colocado de início para todos aqueles que procuram a psicanálise, mas o que cada um vai fazer com isso é a questão. Os arranjos que cada ser falante vai articular para dar conta do que chamamos o real do sexo são sempre singulares. De um lado, um dos arranjos possíveis e singulares é a inscrição desse real sob a batuta do significante fálico, ou não, ressoando o dizer de Lacan sobre a insondável decisão do ser. O próprio Lacan vai assinalar como esse significante fálico pode operar ao organizar e cernir uma borda nesse furo no real ao produzir um limite no gozo ilimitado, fora do sentido. Mas e o ser falante que não se inscreve a partir do significante fálico, como é que se faz? Esse modo nos coloca diante do ultimíssimo ensino de Lacan, pois agora estamos nas amarrações singulares dos registros que cada um pode fazer para se orientar.

Esse é o pontapé para a fala de Blanca Musachi, intitulada “Crianças e adolescentes no mercado das identidades de gênero”, ao abrir um pouco mais essas amarrações possíveis fora do significante fálico e, com isso, afirmar que onde começa o campo do gozo acaba o binarismo, pois é um campo de uma lógica que está para além da lógica fálica. Essa lógica da singularidade faz objeção à ideia de norma – pode ou não pode? – a qual é fundada no binarismo. Lacan pensou nesse ponto ao criar o objeto a, umobjeto fora da norma e, continua Blanca, um objeto queer e transidentitário, habitando no falasser como uma alteridade irredutível, como diferença absoluta, sem nenhuma simetria nem reciprocidade. Sabemos o quanto um certo discurso da ciência pode entrar de maneira avassaladora nesse ínterim ao excluir o sujeito sob a ótica de um reducionismo epistemológico e mesmo ontológico: onde fica a singularidade do falasser? É com isso que Blanca propõe uma espécie de tempo para dar lugar às dúvidas quando estamos abordando essas questões na clínica com crianças e adolescentes. Parece não haver um tempo de compreender na contemporaneidade, passando-se imediatamente de um instante de ver a um momento de concluir, e isso tem consequências muitas vezes irreversíveis para o ser falante.

Já na fala de Eliane Costa Dias vemos uma retomadada importante precisão feita por Oscar: precisamos diferenciar o fenômeno trans, produto e efeito dos discursos de uma época, e o sujeito trans, o ser falante que sofre por não se acomodar ao corpo e à identidade que lhe foram designados desde o nascimento. Ela nos afirma que os transexuais, ao atestar o não funcionamento do significante fálico, produzem, em contrapartida, a não operatividade da diferença sexual pensada a partir do elemento fálico. E é aí onde as bricolagens singulares de cada um com essas peças soltas, esses pedaços de real, podem reverberar nos corpos; corpos esses que, para a psicanálise, apresentam uma disjunção entre sujeito e corpo, significante e pulsão. Lacan no Prefácio a O Despertar da Primavera afirma que a sexualidade faz furo no real e Eliane complementa ao afirmar que grande parte dos seres falantes se acomoda mais ou menos com esse furo, faz algo com esse furo, porém os sujeitos trans são aqueles que não se acomodam, buscam com radicalidade nascer novamente, por sua própria invenção corrigida, fazem-se um corpo, dando uma origem, montando-se um corpo, uma imagem, um gênero e um sexo. Retomando uma citação de Samuel Beckett, na qual lemos: “tentemos de novo, fracassemos de novo, fracassemos melhor, a cada vez”, e que pode bem ser uma leitura possível a partir desse lugar “entre” do sujeito trans.

[1] Integrante da Comissão de Referências Bibliográficas da II Jornada da Seção Sul da EBP.
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