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Sobre grupos*

Romildo do Rêgo Barros (AME, EBP/AMP)

De onde podemos partir para falar de grupo? Qualquer ideia de grupo em psicanálise é devedora, caudatária, da ideia de que o sujeito encerra em si uma alteridade. Cada sujeito, em certo sentido, é Outro dele mesmo, tendo uma abertura para o exterior que faz com que não exista sozinho. Homem algum é uma ilha, como dizia o título do livro de Thomas Merton.[1]

A alteridade em psicanálise se dá como uma espécie de leque: da alteridade em relação ao Outro à alteridade em relação ao objeto. São duas alteridades internas ao sujeito. Chamamos de alteridade aquilo que está ‘dentro’ do sujeito, mas nega sua essência. Podemos dizer que cada sujeito contém ‘dentro’ de si algo que nega sua interioridade. Esta é uma maneira forçada de dizer, pois, a rigor, não há dentro de si.

Podemos também dizer que com a teoria freudiana da fantasia – cujo esboço podemos situar em 1897, em uma carta a Fliess (n. 69), Freud inaugura algo que é essencial para entender a relação que cada sujeito mantém com a alteridade. É a teoria da fantasia que nos permite entender que um sujeito possa conter dentro de si um objeto que, ao mesmo tempo, é e não é ele mesmo. Só através dela podemos situar a relação que cada sujeito mantém com um objeto, e que Lacan vai expressar com a fórmula $ ◊ a. Sem essa mediação, a relação seria impossível, já que sujeito e objeto são heterogêneos, como diz Lacan em Kant com Sade.

O sujeito é uma alteridade em relação a si próprio, no sentido de que contém dentro de si duas alteridades que negam a sua essência. É por isso que o sujeito não pode ser definido essencialmente, já que nele há uma negação da sua própria essência. O sujeito é mais uma operação do que uma essência.

Um sujeito somente pode ser definido em psicanálise se for levada em conta a sua complexidade, e, principalmente a complexidade que se encerra na ideia de dentro e fora: um dentro que está fora e um fora que está dentro. Ele é, ao mesmo tempo, uma espécie de afirmação e de negação. A negação do sujeito é aquilo que funciona como alteridade.

É nesse sentido que Freud vai dizer que não existe diferença entre psicologia individual e psicologia social. Para ele a psicologia do indivíduo é a mesma do social, o sujeito tanto é individual quanto social. Ele chega a essa afirmação partindo da ideia de que o sujeito não se confunde com o indivíduo, no sentido de que o sujeito não é um corpo, que tem uma membrana que define o interior e o exterior como coisas separadas. O sujeito só é sujeito na medida em que o exterior se combina com o interior e vice e versa. O sujeito é uma operação que põe em confronto o fora e o dentro, de tal maneira que o fora é dentro e o dentro é fora – diferente da gafieira do famoso samba de Billy Blanco, onde quem está fora não entra e quem está dentro não sai. A lógica do sujeito é outra.

Os grupos artificiais freudianos

Em 1921, Freud escreveu um texto importantíssimo, ao menos para a civilização ocidental, que chamou de Psicologia de grupo e análise do eu. Em um dos capítulos usa o Exército e a Igreja como exemplos para discutir a questão dos grupos artificiais. O que é um grupo artificial para Freud? Por que escolheu o Exército e Igreja? Freud fala dos grupos artificiais como uma espécie de resultante em um sistema de forças que tem um vetor vertical, que se dirige ao chefe, e um horizontal, que se dirige ao irmão, ao camarada, ao colega, aos pares, etc.

Grupo freudiano não quer dizer que é um grupo como Freud faria, mas ganha esse nome por ser uma teorização dele. Essa qualificação do grupo como artificial é importante, pois onde se pode encontrar o seu artifício? É de certa forma não poder saber que o grupo se mantém por essa tensão entre o amor vertical ao chefe e o amor horizontal aos irmãos.

O grupo artificial é uma espécie de organização, de combinação que podemos desenhar em termos cartesianos numa linha vertical que se dirige ao Um, ao chefe, e uma linha horizontal que se dirige ao coletivo dos semelhantes, dos pares, dos irmãos, ou colegas. Todo grupo artificial se mantém nessa tensão entre dois vetores. É uma situação de tensão, mas há qualquer coisa que faz com que essa tensão não seja sentida. Imaginem o que seria do exército se, além da tensão da guerra, os soldados sentissem a tensão de estar em grupo? O que seria de um eclesiástico se a questão da autoridade do Papa o deixasse sem dormir? Impedir que se sinta essa tensão é uma das tarefas do grupo artificial.

O grupo artificial opera como tal porque ninguém que está dentro dele sabe que se trata de um grupo artificial, já que a Igreja foi fundada por Deus, está prevista, portanto, desde a eternidade, e o Exército é uma instituição perene que mantém a integridade do solo pátrio. Essa tensão é eliminada através do que se chama em ciência política de ideologia. A ideologia é uma espécie de pensamento que faz com que o fato do grupo se manter em constante tensão não seja percebido. Se a tensão for percebida, as coisas vão mal. O extremo desse “as coisas vão mal” aparece, no texto freudiano, na referência à famosa passagem do livro de Judith no Antigo Testamento, quando ela corta a cabeça de Holofernes e seu exército se dispersa. Essa é a demonstração freudiana: sem o chefe, o estado de tensão aparece como angústia; assim o grupo, como grupo artificial, não se mantém.

A melhor figura do chefe, tirando Deus, é o pai. Não qualquer pai, mas aquele suposto amar igualmente todos os filhos. Trata-se de um pai que recobre a contradição que existe necessariamente entre o coletivo e o indivíduo. Não é verdade que o pai ame os filhos igualmente, mas é preciso, para esse coletivo sobreviver, que haja a hipótese de que o pai ama a todos igualmente. Se o pai ama diferentemente – e esta é a tragédia de Totem e Tabu – o coletivo se dissolve, ou, pelo menos, entra em crise. Uma ideologia faria acreditar que os irmãos são amados igualmente e que é necessário que eles sejam assim amados, sob pena de que essa tensão, essa montagem tensa entre o chefe e os irmãos, seja posta em questão.

Essa montagem freudiana dos grupos exige uma consistência extraordinária da função do Um. Que não seja necessariamente uma pessoa – que seja, por exemplo, um princípio –, mas, de qualquer forma, é necessário, para esse grupo existir, que haja algo inquestionável. Nesse contexto, é o Um que garante a consistência do múltiplo e não o contrário, e é nisto que esse grupo é tão particular. Hitler, por exemplo, não devia nada ao povo alemão. Aliás, quando já não havia mais esperança de vitória, parece que ele queria que o povo alemão fosse destruído, para que algo de puro finalmente aparecesse. Se os alemães são incapazes de matar todos os judeus, que eles mesmos pereçam, pensava Hitler nessa época. Se os alemães não eram capazes de fazer uma membrana que dividisse o exterior do interior, que perecessem. Vocês estão vendo a lógica extrema do grupo que Freud teoriza criticamente? Freud não era nem militar e nem religioso, era alguém que usou a Igreja e o Exército quase como casos clínicos.

A inconsistência do Um e os pequenos grupos

Em 1939 começa a Segunda Grande Guerra, que vai até 1945. A carnificina de 1914 a 1918 já havia ocorrido na Europa. Na Segunda Guerra, a negação da relação topológica entre externo e interno é levada às consequências últimas, que são sempre consequências de sangue, de destruição de corpos.

Em 1945, um jovem psiquiatra francês, Jacques Lacan, vai à Inglaterra e conhece uma experiência de grupo que se realizava no exército britânico, de seleção dos soldados que podiam voltar ao combate. Foi a partir do seu contato com essa experiência que Lacan publicou, em 1947, um artigo importante para nós que se chama A psiquiatria inglesa e a guerra.

O texto de Lacan, apesar de não ter sido esta a sua intenção, pelo menos expressa, em um certo sentido é uma resposta ao texto de Freud, depois da Europa ter experimentado esse retorno topológico, essa tentativa desesperada de separar o dentro do fora resultando em sangue. A destruição da Europa seria a lógica última do texto freudiano. É como se Lacan dissesse a Freud: “olhe o que pode acontecer se sobrevivemos ao que você está apontando – isso é, a hegemonia do Um sob a forma do nazi-fascismo –, olha de que poderemos dispor”.

Enquanto critica duramente a França, Lacan diz que a Inglaterra manteve sua dignidade. No caso, manter a dignidade era fazer com que um coletivo pudesse subsistir sem a garantia física do Um. A Inglaterra estava liquidada, estraçalhada, bombardeada, sem condições de obter que o Um indicasse alguma direção. Os pequenos grupos da psiquiatria inglesa são de certa forma uma antecipação, como toda sobrevivência é uma forma de antecipação. Você organiza hoje algo que só vai ganhar a sua razão de ser depois de mudadas as condições que fizeram com que a experiência fosse feita. Da crítica freudiana à experiência lacaniana há um percurso extraordinariamente importante na história da psicanálise.

A ideia lacaniana não é ingênua do ponto de vista da democracia, e muito menos é um protesto histérico contra a hegemonia do Um. É uma maneira de tirar consequências desse quadro que foi descrito por Freud em 1921. Só um gênio como Freud poderia montar as consequências últimas do que estava acontecendo na Europa, e do que ocorreria alguns anos depois.

A verdade e o real

Lendo com cuidado o texto de Lacan, percebemos uma análise rigorosa da situação francesa. Eric Laurent observa que nessa época, em 1946, logo depois da guerra, ainda não havia o mito da França resistente, que foi uma invenção do general De Gaulle. Foi uma minoria que resistiu, como em qualquer lugar. Então o que Lacan chama de ideologia inglesa se caracteriza como “uma relação verídica com o real”. Uma relação na qual verdade e real se articulam, ao invés de se oporem. Isso tem tudo a ver com que eu estava dizendo até agora. A proposta de Bion visa articular verdade e real para que o real não seja representado pelo imperativo de gozo do supereu. É nesse sentido que é realista e é combatente.

Retomando “Psicologia coletiva e Análise do Eu”. Há na linha vertical uma relação com o chefe e, na horizontal a relação entre irmãos, pares, colegas, companheiros, como se queira. É esta articulação entre o vertical e o horizontal que faz com que o grupo tenha uma relação tensa, mas que possa permanecer, possa durar. Se o general perde a cabeça, a tropa se dispersa. Esta é a lógica da psicologia coletiva. Se o S1 não responde, ocorre a dispersão, justamente porque não se apresenta nenhuma dimensão para sintomatizar a ausência do Outro. Isso pode ser estruturado como o discurso de Lacan: se o S1 não se mostra capaz de galvanizar os coletivos, não se apresenta um sujeito do sintoma, então há a dispersão do coletivo. Isso é elementar em política. É nessa relação tensa entre a dimensão do amor vertical ao chefe e a horizontal, do amor, do cimento entre os iguais, que a estrutura da psicologia coletiva freudiana de 1921 pode se manter tensamente, mas pode durar nesta articulação. Vocês podem estruturar isso como o discurso do mestre.

Se o S1 entra em falência, se o general perde a cabeça, a única saída possível é a dispersão dos coletivos? Esta é a pergunta de Bion. Será que há uma saída, dada a dificuldade dos grandes significantes mestres, que não seja a dispersão pânica dos coletivos ou a ordem de ferro superegóica? A margem de manobra não é muito ampla, é estreita. Laurent observa que Bion vai apostar nessa dimensão horizontal e, com isso, cria um primeiro exemplo, para nós pelo menos, do que vai poder inspirar Lacan na ideia dos cartéis e secundariamente na da Escola – isso que eu chamo, meio brincando, de sociologia lacaniana.

Se pensarmos na falência do S1, não como uma crise de guerra, mas como um fenômeno da civilização, veremos que isso vai exigir muito mais da estrutura dos pequenos grupos. Vai exigir maior consistência e durabilidade mais longa que o tempo de uma guerra. Se é verdade que nossa civilização se caracteriza por uma não-resposta do Outro, pela inexistência do Outro, é preciso que haja grupos que saibam manejar a ligação horizontal entre os iguais. É preciso uma nova estruturação simbólica que não parta da adesão de cada um ao chefe, mas da ligação horizontal entre os iguais sem que seja pela via de um ‘todos iguais’, que tende a restabelecer o Um sob a forma do pior – seja pela democracia de massas, do consumismo, seja pela dimensão do império do supereu, de ordens insensatas.

Tento mostrar uma diferença entre o que seria o uso dessa dimensão horizontal sem a ilusão do clã fraterno de Totem e Tabu, ou seja, o clã que só dura até o momento em que um dos irmãos diz: “O gozo do pai vai ser meu”, momento em que se dissolve. Esta é a instabilidade da dimensão horizontal. Ela não resiste à reivindicação de gozo feita por um dos iguais. É por isso que o ‘todos iguais’, em um pequeno grupo como o cartel ou um grande, tende a uma certa recuperação do universal.

Sabe-se que Bion e alguns outros propuseram pequenos grupos que funcionavam mais ou menos autonomamente, em uma formação mínima para uma situação de desespero do Um, se posso dizer assim. Desta forma, alguém na Inglaterra disse “não!” à fatalidade de que quando o general desaparece as tropas gritam “salve-se quem puder”. É possível no declínio, na falta do general, em uma certa desmoralização do Um, formarem-se grupos relativamente autônomos que mantêm a dignidade do social. Esse é o elogio que Lacan faz aos ingleses. Eles foram capazes de manter a dignidade do social numa situação totalmente adversa.

Poderíamos dizer que, nesse texto de Lacan, há um elogio à iniciativa de formar grupos quando existe uma falha no S1 (um de seus termos para formalizar a função do líder). Digamos que o S1 como chefia estava fraco, uma vez que a Inglaterra estava numa situação de derrota militar até aquele momento. O S1 não podia ser representado fisicamente. Talvez um pouco mais tarde, com Churchill e outros, teremos os grandes homens que vão inicialmente levantar os países derrotados e em seguida reconstruir a Europa no pós-guerra. Há uma lógica nesse movimento que foi a maneira encontrada pelos ingleses de manterem uma consistência horizontal, sem necessariamente fazerem o apelo ao Um muito consistente, fisicamente, na figura do chefe. Os pequenos grupos de Bion são uma invenção democrática: isto quer dizer, precisamente, no contexto da guerra na Europa, que era preciso se pensar a lei sem que tenha necessariamente o corpo de um chefe.

Pequenos grupos

Grupo tem mais de uma direção, mais de um caminho. Podemos pensar os grupos a partir das terapias grupais que, sem dúvida, tiveram sua origem ligada aos fenômenos da sociedade de massa. A criação das terapias grupais tem a ver com o extraordinário avanço democrático das massas, ou seja, a chegada das massas a um grau inédito na história, tanto na política, ou seja, democracia pura e simples, quanto na economia – para citar um exemplo, o consumo de massas. Então, essa espécie de massificação, que caracteriza a nossa democracia contemporânea de uma forma sem precedentes, parece ter alguma ligação com a ideia de que, primeiramente, é possível terapeutizar os grupos e, em segundo lugar, é interessante terapeutizá-los dentro de uma ideologia muito próxima do “time is money”.Haveria certos tipos de vantagens em abranger um grande número de pessoas em um menor espaço de tempo. Digamos que é a versão capitalista da ideia de que os grupos são terapeutizáveis, ou seja, são sujeitos ao tratamento terapêutico como grupos.

Temos de um lado as terapias de grupos, e, de outro, as formas de organização coletivas características da época do Outro que não existe. Atualmente temos, como tendência, – que não é isolada do fenômeno democrático de massas que caracteriza o Ocidente hoje, e não só ele –, formas de organização, de agrupamento, que não existiam anteriormente. Neste sentido, o comunitarismo é uma tendência contemporânea de formação de identidades a partir do pertencimento a uma comunidade cujos membros se reconhecem entre eles e estão também do lado dos outros grupos numa certa estruturação. Essa tendência atual talvez exigisse de Freud uma reformulação da ideia que ele tinha do narcisismo das pequenas diferenças. Talvez a fronteira que Freud traçou não fosse exatamente a mesma de hoje, dado que o que constitui de certa forma a lógica do texto em 1921, “Psicologia coletiva (ou dos grupos) e análise do eu” é essa espécie de agrupamento circundado por uma membrana que faz fronteira com o mundo absolutamente exterior. Podemos ver no comunitarismo que há uma espécie de interpenetração de várias comunidades, de forma que, quando se trabalha, pertence-se a uma, quando se está em casa, pertence-se a outra, quando se estuda, pertence-se a uma terceira. Existe uma espécie de interpenetração que é diferente do que Freud dizia, por exemplo, do português que se opõe ao espanhol de tal maneira que é sendo oposto ao espanhol que ele se define como português. Esse é um dos exemplos que Freud usa quando trabalha o narcisismo das pequenas diferenças. Aliás, no escrito “A psicanálise e seu ensino”, Lacan diz que o que Freud chama de narcisismo das pequenas diferenças, deveria se chamar de “terrorismo conformista”.

Em relação aos grupos há, portanto, essas duas direções que são típicas de nossa época: a tendência à multiplicação de terapias grupais a partir da ideia de que um grupo como tal pode se submeter a uma terapia; e, do outro lado, o avanço das novas formas de organização coletiva que são bem próprias da nossa época. Os exemplos dessas novas formas são o comunitarismo, as novas formas de seitas, que são bem diferentes das seitas trabalhadas por Ernst Troeltsch e Max Weber no final do século XIX. Max Weber se aproxima um pouco do que Freud pensava no narcisismo das pequenas diferenças, no sentido em que ele tratou do que hoje nem se chamaria de seita, a Igreja Batista. Weber a tratou como uma metonímia da Igreja, como alguma coisa que se destaca da Igreja. Hoje em dia não seria a única forma de se criar uma seita, há seitas que se organizam ao redor de um chefe ou de um hábito de vida (alimentar, sexual, laboral…) sem relação metonímica com aquilo que seria uma igreja com pretensão universal, como a católica.

Temos, então, o comunitarismo, as seitas e os grupos sintomáticos dos quais o Orkut e a internet estão cheios, neste não se precisa de sintomas sérios. “Eu odeio Galvão Bueno” poderia ser um grupo sintomático. As pessoas se reúnem em torno do ódio a Galvão Bueno, ou “Eu amo Galvão Bueno”. É uma certa organização a partir de um traço, é isso que é característico da dispersão democrática da nossa época. É possível fazer agrupamentos a partir de traços bastante discretos e isso, não obstante, constituiu um grupo perfeitamente bem formado, que tem uma certa duração e um certo funcionamento.

As terapias grupais seriam o correspondente psi, a resposta psi para os fenômenos de massificação. Seriam o correspondente dos fenômenos de massificação democrática que se encontram, nos dias de hoje, na política, na democracia propriamente dita – capitalista e basicamente ocidental – e na economia. O maior exemplo talvez seja a estrutura do consumo. Na produção poderíamos achar outra coisa, mas no consumo me parece mais evidente. Não é somente por ironia que digo que as terapias grupais correspondem a um certo uso do “time is money”: elas são uma espécie de otimização que somente é possível de ser pensada se tratarmos o tempo como mercadoria. Se quisermos nos aprofundar nisso, podemos estudar as grandes teorias do final do século XIX que lidam com a administração. O taylorismo e o fordismo no século XX, por exemplo, demonstram como é que se otimiza a produção dando um novo tratamento ao tempo. O tempo passa a ser um elemento concreto na produção da mercadoria, a tal ponto que se torna ele próprio uma mercadoria: este é o sentido mais apropriado da expressão “time is money”. Não quer dizer apenas que não podemos perder tempo, mas também que o tempo, como tal, pode ser tratado como mercadoria. Ele pode ser mensurado, quantificado como qualquer mercadoria. E o tempo tem uma moeda padrão a ser definida.

Do “time is money” ao Realismo de Combate

O texto de Laurent “O real e o grupo”, discute algo interessante para nós. A partir de um comentário do texto de 1946, de Lacan, “A psiquiatria inglesa e a guerra”, Laurent se detém um pouco no realismo em que Lacan se situa, pois ele se situa numa posição realista. Essa posição exigia, na época, uma certa coragem já que o realismo – Laurent explica – era o argumento dos colaboradores do nazi-fascismo. De modo que Lacan, se filiando ao realismo, exige ser bem entendido, numa época em que as feridas ainda estavam abertas, pois havia um ano que a guerra havia terminado.
“Realismo de combate” é a expressão que Éric Laurent usa. Será que poderíamos aproveitar essa expressão? Por exemplo: realismo de combate poderia inspirar alguém do Digaí-Maré a defender a ideia de trabalho em grupo. Como se faz uma terapia ou um tratamento clínico em grupo sem que seja simplesmente sob a estrita forma do “time is money”? Esta seria uma maneira de trabalhar dentro de uma perspectiva lacaniana, dentro do realismo de combate proposto por Lacan em 1946. E combate requer um inimigo – o que, aliás, caracteriza o texto de Bion, que será comentado posteriormente.

O realismo de combate supõe uma falência das grandes utopias. Diante de uma grande utopia, você não precisa ser realista. Aliás, quanto mais se é realista, pior. O realismo de combate se torna necessário se você está fora das grandes utopias universalizantes. O realismo de combate é alguma coisa que, como se diz do diabo, está nos detalhes. O realismo implica um certo pragmatismo, um certo julgamento detalhe por detalhe, diferente da justificativa universal de uma grande utopia. Por exemplo: tudo que eu faço serve ao socialismo, ou tudo que eu faço serve à raça branca. Trata-se de uma grande justificativa ideológica, universal, que pode ser aplicada a qualquer comportamento. A grande utopia não precisa desse tratamento de detalhe, que vigora justamente quando faltam grandes princípios e orientação universais. A Inglaterra estava arrebentada, estava se reorganizando para poder fazer o último esforço de guerra que a levaria à vitória. Assim, aos psiquiatras e psicanalistas ingleses – Bion e Richmann, por exemplo – só foi possível propor uma reação a partir justamente da descentralização. Não necessariamente por um gosto democrático, o que os aproximaria das utopias, mas pelo simples fato de que o Outro não respondia. Há um significante mestre que não responde, como os nossos atuais telefones: o número chamado não responde, pode deixar a sua mensagem na caixa postal.

Não é à toa, observa Laurent, que Lacan associa realismo ao heroísmo. O realismo é algo às vezes pejorativo – se, por exemplo, digo que fulano é realista, isso pode significar que ele é oportunista, que ele topa qualquer negócio, bastando que tenha algum ganho. Contrariamente a essa ideia, Lacan associa o realismo ao heroísmo. Ser realista, nessa época, era uma forma de heroísmo no sentido de que era uma proposição que visava provocar efeitos numa situação em que as iniciativas tinham que ser dispersas. Pode-se ver o nascedouro mais remoto da ideia do cartel. A ideia de que é possível uma produção interessante para um grande coletivo – para a Inglaterra ou para a Escola – a partir de um trabalho disperso e plural, pois um cartel não tem nada a ver com outro; eles podem, no mesmo momento, discutir assuntos bastante diferentes. É possível que essa falência dos grandes ideais seja provisória, mas, enfim, é uma crise dos nossos tempos, que já existia na época da Segunda Guerra Mundial.

Estou tentando margear o texto “O real e o grupo” de Éric Laurent. Diante de alguma dificuldade nos significantes mestres, de uma certa crise no Outro, no Outro universal – crise religiosa, política, democrática, econômica… enfim, uma crise nas grandes unidades –, há muitas maneiras de se criarem respostas múltiplas e diversas. A resposta de Bion e Richmann, e do cartel de Lacan, são exemplos, mas podemos pensar igualmente nas terapias grupais e no princípio do “time is money”, podemos pensar na ideologia democrática do “são todos iguais”. “São todos iguais” é uma maneira de se retomar o universal. A discussão de Lacan é precisamente essa: qual é a alternativa democrática ao “são todos iguais” que é o nosso correspondente do “time is money” e das terapias grupais fundadas na otimização do tempo e da produção? Essa me parece que está nos fundamentos do trabalho de Lacan de 1946 e também, claro, no trabalho do próprio Bion.

Será que é possível pensar em pequenos grupos que teriam a tarefa de preservar singularidades? Esta indagação interessou a Bion, e sem dúvida terá ocorrido também a Lacan. Será que é possível uma alternativa em que a singularidade, mesmo sintomática, possa ser preservada? Essa é uma pergunta que o “time is money” como princípio não tem condições de responder. Então se vê que Lacan insiste na importância dessa proposta e dessa prática de Bion que não interessaria somente à saúde mental ou à psicanálise, mas a toda a sociedade, como diz Lacan no texto de 1946. Isso é discrepante com a ideologia das terapias em grupo que visam o universal.

Podemos dividir aí estratégias clínicas de grupo. Podemos pensar nessa estratégia bem própria do “time is money”, da otimização e do aumento do número de pessoas atendidas num menor período de tempo possível, sendo uma espécie de correspondente psi do taylorismo, do fordismo e das grandes teorias da gestão industrial no Ocidente.

Voltemos à ideia de que o grupo em si é multiforme. Existe mais de uma maneira de pensarmos para que serve, como estruturar, em quê medida é justo e é útil o funcionamento em grupos. Isso interessa ao Digaí-Maré intimamente, inclusive para seu próprio funcionamento. A partir disso, poderíamos distinguir as terapias grupais do “time is money”, isso é, uma otimização democrática do uso do tempo, de um manejo de grupos no qual não se tenha que abrir mão do que caracteriza o sujeito propriamente: a sua singularidade, que não é a mesma coisa que individualidade – sobre o que Lacan insiste desde sempre.

Dá para entender essa dupla porta de saída? Terapias grupais “time is money”, de um lado, e, do outro, experiências clínicas em grupo a partir da insistência na singularidade. A ideia de produtividade é completamente diferente. Nas teorias grupais do “time is money” trata-se de uma espécie de taylorismo, de fordismo, das grandes teorias da gestão capitalista. Foi feito para isso, não é culpa de ninguém. Então, a pergunta de Lacan que é também a nossa, e do Digaí-Maré, é se é possível o acesso clínico dos grupos sem que seja através de uma espécie de otimização da produção.

Esse panorama geral faz com que a discussão se dê no seguinte plano: há uma clínica de grupos que não se pauta pelo universal. Há algumas décadas isso seria uma contradição em termos. Com Lacan isso talvez não seja uma contradição em termos. É por esse motivo que, quando se fala em grupos, é necessário dizer sobre o quê se está falando.

A “impotência neurótica” de Bion

O texto de Bion sobre as tensões internas tem um ponto que me interessou muito. Trata-se de uma frase que se encontra na apresentação, na segunda divisão do texto. Ele está falando dos grupos que vai formar: “Sem dúvida era preciso prever que algumas das atividades organizadas nesse espaço fossem militares, outras civis”. Parece existir uma espécie de dramatização desses grupos, uma espécie de reprodução em miniatura do funcionamento do mundo. Mas o que mais me interessou vem agora: “Atividades militares, atividades civis e outras ainda que fossem a expressão da impotência neurótica dos doentes”. O que caracterizava os grupos de Bion, portanto, era a proposta de atividades precisas que se subdividiam em:

1. atividades militares
2. atividades civis
3. atividades neuróticas (Risos)

Não é interessante? Vocês riem porque as atividades neuróticas, em geral, não estão no mesmo plano das civis ou militares. O mundo não se divide entre militares, civis e neuróticos, justamente porque há neuróticos que são militares e outros que são civis. Então, não se pode dividir essas atividades em três categorias, sendo que uma das quais é completamente diferente das duas outras. Se aqueles que são militares deixam de ser civis, não é por isso que deixarão de ser neuróticos. Vê-se que há uma ruptura, há algo discrepante. O que me pareceu mais genial foi a ideia de propor três tipos de atividades onde uma não tem nada a ver com as outras duas. A impotência neurótica dos doentes não diz nada sobre as forças armadas e nem sobre a sociedade civil. E, no entanto, Bion escreve como três tipos de atividades propostas para os pequenos grupos. Parece que a pedra de toque, o traço genial desses pequenos grupos foi, por um lado, fazer um grupo como o mundo inteiro, entre militares e civis, no plano das atividades, mas incluindo, por outro, no coração dos grupos, a dimensão sintomática. Se você inclui dentro dos grupos a dimensão sintomática, ao que tudo indica, você rompe com o “time is money”.

Já não se pode dizer que o mundo é composto universalmente de militares e civis, porque há uma dimensão que descompleta esse universal e que se chama “os neuróticos”. Não é uma beleza? Bion pensou nisso de tal maneira que o universal não precisava dos neuróticos, o mundo de fato se divide em militares e civis. Há aí uma espécie de paradoxo que ele inventou e que é muito bonito. A gente diz que todo mundo que não é militar é civil. Neste ponto ele diz que não, não é verdade: existem as atividades civis, as atividades militares, e existe além delas uma fonte de ruptura dessa complementariedade, que se chama o sintoma. É a partir disso que Bion pode propor atividades que não negam os rateios, as dificuldades, os tropeços da neurose, porque há atividades propriamente neuróticas, para os militares e para os civis.

Parece-me que no texto de Bion já existe uma ideia de como um grupo que tende ao universal pode ser descompletado. E o que é o universal? O universal da humanidade é o somatório dos militares e civis: os que não são militares são civis. Somando-os, temos a humanidade. Não há ninguém que não seja nem militar nem civil, porém são descompletados pela dimensão sintomática. Este é o traço que permite que um pequeno grupo não seja universal. Deve-se lembrar que o fato de o grupo ser pequeno não quer dizer que não seja universal. O fato de ter uma dimensão que descompleta o somatório é o que assegura que não seja universal. A dimensão sintomática racha com a inteireza do somatório de militares e civis.

Podemos ver que essas atividades baseadas na impotência neurótica dos doentes se espalham. Podemos ter uma atividade neurótica na ordem unida dos quartéis, ou na tarefa de cozinhar ou fazer um memorando, ou qualquer coisa assim. Essa divisão, ainda que talvez não seja nisso que Bion estivesse pensando diretamente, está inteiramente de acordo com o que podemos chamar de “sociologia lacaniana”. A “sociologia lacaniana” possui um elemento que descompleta o universal, daí a Escola, o cartel, o passe e etc.

Regulamentos

Havia um regulamento preciso, afinal esses grupos eram feitos para militares, porém há um fundo irônico porque cada ordem, cada exigência do regulamento, é furada. O regulamento seguinte foi comunicado aos cem homens que compunham o serviço:

1. Todos os homens são obrigados a fazer uma hora de exercício físico por dia, salvo se apresentarem um certificado médico (os itálicos são meus);
2. Todos os homens devem aderir a uma ou a várias das seguintes atividades: trabalhos manuais; cursos de correspondência organizados pelo Exército; marcenaria; cartografia; construção de maquetes etc…
3. É permitido a cada homem formar um novo grupo, seja porque não existe ainda o tipo de atividade que ele deseja, seja porque, por uma razão qualquer, é impossível para ele aderir a um dos grupos já existentes.
4. Todo homem que não se sinta em condições de assistir as reuniões do seu grupo deve se dirigir à sala de repouso.
É um texto irônico, e Lacan foi sensível a esta dimensão. Podemos observar que a redação de Bion é muito esclarecida. Ele usa essa articulação dos três tipos de atividades fazendo com que a dimensão neurótica dos soldados seja levada em consideração na própria distribuição das tarefas. O regulamento já inclui a impotência neurótica: você é obrigado a isso, salvo se não quiser ou não puder (Risos).

Se o Outro universal não responde, qual é o risco que correm os sujeitos? É de que os imperativos sejam superegóicos, sejam puros imperativos de gozo. Esse é o sintoma da falência do Outro, ou dos significantes mestres, dos princípios universais. A correção: se Deus não existe, nada é permitido, e não tudo é permitido. Lacan discute essa afirmação. Se nada é permitido, significa que tudo será feito a partir do imperativo do supereu. A ironia bioniana, o realismo de combate em termos lacanianos, é uma maneira de ir contra o império do supereu, que é a alternativa aos significantes mestres quando estes estão em falência. Podemos observar isso nas guerras, em pequenos e grandes grupos.

Reintroduzir a dimensão sintomática nessa grande divisão da humanidade entre civis e militares significa combater o supereu como imperativo de gozo, como um “goza!” sem sentido. Este é o imperativo superegóico no momento em que o Outro não responde, ou seja, quando uma utopia universal não responde. O primeiro efeito disso é o império do supereu como objeto. Se vocês lerem “A banalidade do mal” de Hannah Arendt, quando ela descreve Adolf Eichmann, terão exatamente a idéia do que significa o supereu como legislação, e vão lembrar que Lacan definiu certa vez o supereu como “lei insensata”.

Continuando com Bion:

5. A sala de repouso ficará a cargo de um enfermeiro militar e deverá ser mantida tranquila para a leitura, a escrita ou jogos silenciosos como o jogo de damas.
6. O enfermeiro poderá autorizar conversas em voz baixa sob a condição de que os outros doentes não sejam incomodados.
7. Os doentes excessivamente cansados para se dedicarem a alguma atividade encontrarão espreguiçadeiras onde poderão se deitar.

Todas as frases carregam uma espécie de remodelação na linha seguinte. Bion começa com a pura obrigatoriedade militar do ‘para todos’ e de repente cada universal tem uma modulação que é a introdução da dimensão neurótica no regulamento militar. Fiquei realmente encantado com esse texto, justamente com a ideia de que um pequeno grupo deve introduzir, em sua própria legalidade, a dimensão sintomática. É isso que evita que a alternativa dada à falência do Outro seja o império superegóico, o domínio do imperativo do gozo, o supereu na sua dimensão de objeto.
É possível entender essa dimensão ou essa forma de organização que estou chamando de irônica como um combate pela civilização. Nos grupos de Bion, e certamente na estrutura que Lacan vai pensar vinte anos depois para a Escola, existe a ideia de que há uma estrutura de combate, para usar o termo de Laurent. Há algo de militar, introduzindo o que há de impotência neurótica dos doentes.

Vejam uma frase forte de Laurent que tem tudo a ver com isso: “Se a psicanálise é apresentada na sua dimensão de eficácia social, – como algo eficaz socialmente -, é na medida em que ela é instrumento de luta contra a morte, a morte que está em processo na civilização”. Podemos fazer uma linha que vai do grupo de Bion até o Digaí-Maré, no sentido de que se propõe uma alternativa contra a morte na e da civilização. Parece algo meio grandioso, mas é como o diabo, é no detalhe que está a chave.

Da Escola de Lacan

Laurent propõe uma aproximação essencial entre os grupos de Bion e o “cartel”. O cartel é um pequeno grupo de trabalho, sem líder, voltado sobretudo para o estudo e elaboração de textos, mas igualmente para realização de pequenas tarefas que Lacan, coloca na base da instituição criada por ele, a Escola. Se é verdade que os pequenos grupos de Bion são ancestrais do cartel lacaniano, pode-se dizer que a Escola de Lacan descende do cartel.

Deste ponto de vista, o “Ato de fundação da Escola Freudiana de Paris”, de 1964, em que Lacan define o cartel, é um texto canônico, pois é a consequência, a formalização institucional, do que talvez tenha começado como uma intuição na visita de Lacan à Inglaterra. A forma grupal proposta por Lacan com o termo Escola seria o desdobramento institucional da ideia de que é possível haver grupos relativamente autônomos que possam trabalhar para um Um que não precisa necessariamente ser corporificado.

O inovador na proposta de vocês do Digaí parte deste ponto. Vocês buscam o outro lado deste desdobramento, o lado clínico do tema do pequeno grupo, a partir do cartel.

Se a primeira perna da Escola é o cartel, a outra é o passe. É mais uma experiência criada por Lacan para ver como readmitir uma exterioridade. Uma análise que se faz na confidência, como pode ela retornar ou se dirigir ao coletivo? É uma pergunta difícil, que só pode ser respondida um a um. Não se pode fazer uma regra geral para esse retorno. É por isso que a transmissão dos passes se dá sob a forma de testemunhos. Testemunho quer dizer: aquilo que eu disse e que ninguém nunca vai dizer igual.

A orientação lacaniana e o passe servirão para isso, servirão para que alguém consiga ter uma função na Escola evitando as cisões entre os grupos.

Para que o funcionamento do grupo seja possível sem a referência direta ao Um sob a forma de um corpo, é preciso que o grupo tenha um ponto de fuga, que mostra sua precariedade. O que Lacan aprendeu com os grupos ingleses vai funcionar nos cartéis e vai funcionar no passe. Quem vai dar o seu testemunho no passe é ao mesmo tempo um sujeito que vai falar da sua análise a partir de um ponto externo – muito do que terá a dizer não é “coletivizável” -, e ao mesmo tempo se endereça ao coletivo e em parte foi até inspirado pelo coletivo.

O passe e os cartéis, pelo menos idealmente, são uma forma de tratamento permanente da Escola, se tenho razão em pensar que são duas subestruturas lacanianas que levam em conta um ponto de fuga que não é o bode expiatório. Uma forma de tratamento da Escola, no sentido de que a Escola somente subsiste, como se dizia na minha geração, como luta permanente.

A Escola quer ser mais do que uma instituição de formação de psicanalistas. Nela está contida uma crítica ativa, prática e teórica ao funcionamento social como tal. A Escola é um comentário vivo sobre a democracia, se posso me exprimir assim; é uma instituição que exige a democracia, por ser logicamente posterior ao assassinato do Pai, porém sem se iludir com a igualdade dos irmãos na lógica de Totem e Tabu. A Escola é posterior ao assassinato do pai, sem que com isto signifique a igualdade dos irmãos e o puro domínio da justiça distributiva, que, como vocês sabem, é uma coisa da qual Lacan vai falar criticamente. É uma proposta político-institucional que se coloca num patamar acima do clã fraterno de Totem e Tabu, sem a ilusão de que a família seja um paraíso.

E por que a família não é um paraíso? É porque o coletivo dos irmãos depende da criação de um bode-expiatório. Eu gosto dos meus irmãos se nós dois juntos nos unirmos contra um terceiro. Nós somos três amigos; um vai pra casa e os outros dois ficam falando mal daquele que saiu. A relação entre esses dois depende de criticar o terceiro, que, no entanto, todos amam. E se amanhã falo com esse terceiro, “pau” no segundo. Isso é uma lógica que faz com que um coletivo somente subsista se tem um ponto de exterioridade, o que é de fundamental importância. O ponto de exterioridade, por exemplo, de Hitler, eram os judeus. “O Ocidente está ameaçado pelos judeus”: não pelos judeus propriamente, mas pelos judeus do delírio de Hitler, que se teriam apossado de todo o saber e de todo o dinheiro, e estão ameaçando a existência do povo alemão: que sejam exterminados, então. A lógica implacável será: mortos os judeus, teremos que matar os alemães. Esta lógica não pára, ela devora os próprios filhos, como dizia Trotsky da revolução.

A Escola não é natural. Natural é o grupo com liderança. A Escola é um efeito de interpretação, enquanto que o grupo é natural. E às vezes a interpretação precisa ser feita várias vezes. Será que não era isso o que estava atrás da proposta do Miller em Turim quando falou da Escola como sujeito? A Escola como sujeito é aquela capaz de fazer sintoma dos seus pontos de exterioridade. É aquela capaz de oferecer um sintoma às suas alteridades.


Notas
* Este texto resulta de uma edição realizada por Marcus André Vieira de duas conferências apresentadas para o coletivo de trabalho do Digaí-Maré nos dias 29 de março e 17 de maio de 2007 (transcrição: Leandro Reis e revisão: Tatiane Grova). Agradecemos a Romildo por ter gentilmente aceito que inúmeros desenvolvimentos tenham sido deixados de lado neste texto em prol da concisão.
* As referências para o que segue são: LAURENT, E. O real e o grupo. In: BROWN, N (ORG). Cartel, novas leituras. Belo Horizonte: EBP, 2021, p 33-48. Tradução: Vera Avellar Ribeiro. O estudo pelo grupo de suas tensões internas BION, W.R. Experiências com grupos: os fundamentos da psicoterapia de grupo. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1970. Apresentação: Tensões intragrupais na terapêutica, p.3-18., onde Bion explica a montagem dos pequenos grupos no exército. “A psiquiatria inglesa e a guerra”, publicado em 1947 (Ref.: LACAN, J. A psiquiatria inglesa e a guerra. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.) Vamos nos apoiar nessas referências, além da “Psicologia de grupo e análise do eu” de 1921. Finalmente, há a Proposição de 1967, em que Lacan propõe que o termo Massen, que faz parte do título do texto de Freud, seja traduzido – naquela época, ou seja, final dos anos 60 e início da década de 70 – como grupo, de modo que ficaria: “Psicologia dos grupos e análise do eu”.
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