Nohemí Brown Agradeço a Oscar Reymundo e à equipe da Diretoria de Cartéis e Intercâmbio…
O lugar do Mais-Um: o que faz do cartel um grupo especial?
Cleyton Andrade
O que faz de um cartel um grupo especial? Esta é a pergunta que nos é dirigida. Logo o que me vem, a despeito dela, são inúmeras situações em que, ao contrário, o cartel pode deixar de ser aquilo a que ele se propõe. Antes daquilo que tem de especial, me ocorrem algumas dificuldades bem banais, corriqueiras, nada relevantes do ponto de vista teórico. Nada, portanto, que convoque grandes elaborações teóricas sobre o cartel e o Mais-Um.
Com isso, quero dizer que é muito fácil para um cartel não funcionar como um cartel. Aliás, apesar de nossos interesses, dar nome de cartel a um grupo, inscrevê-lo na Escola, nem mesmo ser composto por analistas praticantes, implica que seja o dispositivo que esperamos. Se é fácil não funcionar, pode ser mais fácil ainda se dissolver. Incompatibilidades de agenda, excesso de atividades dos participantes, isso para me ater apenas nas questões mais cotidianas. É fácil não funcionar se o Mais-Um for um líder. E pode ser ainda pior se não for.
Daí me parece interessante recorrer a uma passagem do texto de Oscar (2021) quando chama a atenção para o fato de que o Mais-Um é “nem sempre”. É uma função de contingência, uma questão de oportunidade.
Tendo isso em vista, gostaria de isolar uma situação bem específica que me ajuda a pensar. Irei tomar um cartel em particular como objeto de reflexão a respeito do lugar do cartel e do Mais-Um. Menos em relação aos princípios internos e institucionais, mas, sobretudo, recorrendo à imagem de que é também uma porta de entrada para a Escola de Lacan, independentemente de quanto tempo já se esteja ou não nela.
Se temos um cartel clínico, por exemplo, a experiência clínica é seu ponto em comum, que pode ter uma função de nó. Se temos um cartel epistêmico, o texto de Lacan faz essa função. Nestes exemplos, tanto a clínica quanto o texto lacaniano podem fazer parte de uma experiência que toca a cada um. Aqui preciso voltar ao texto de Oscar (2021) para dizer que pode ocorrer o retorno da particularidade de alguns significantes da história do sujeito. Acrescento, por minha conta, que é preciso um certo tratamento, um distanciamento, uma subjetivação, para um trabalho que seja mobilizado por estes significantes da história do sujeito, para que seja de fato produtivo, sob pena de funcionar como um entrave ou dificultador. Uma vivência pode tanto paralisar num lugar sem trabalho, quanto ser uma experiência que mobiliza e faz diferença no produto que poderá vir.
No mesmo livro (2021), editado e organizado por Nohemí, em seu texto, ela cita Agamben a respeito do contemporâneo. A extração feita por ela destaca a necessidade de não se ter um olhar fixo sobre uma época. É preciso “saber ler de um modo inédito o que se apresenta” (2021, p.147). Outra grande dificuldade. Até aqui os problemas deste cartel, que ainda não mencionei a especificidade, já me pareciam suficientemente difíceis antes de considerar o hibridismo deste convite provocação de Nohemí. Afinal, para falar do contemporâneo é quase automático o anacronismo, a utopia, ou a melancolia distópica. É mais fácil ser uma figura literária, cinematográfica ou folclórica diante do contemporâneo, do que estar, de fato, à sua altura. Interpretar o contemporâneo sentado sobre ele, é arte, ou desastre, para comentaristas de futebol. Comentam e fazem previsões sobre um jogo que é simultâneo ao comentário. Prática de alto risco ou riso. Todo aquele que já assistiu um jogo de futebol já experimentou a sensação de suspensão da crítica para levar à sério os críticos esportivos. Eles se tornaram hábeis em, ao serem desmentidos pelo lance seguinte, contornarem de imediato o texto e afirmarem o contrário do que disseram segundos antes de um gol. O risco e o riso é porque, na maioria das vezes, estamos no contemporâneo como comentaristas esportivos, atrasados, apressados ou fora do contexto.
O meu problema, que pode ser nosso, é uma espécie de cérbero: 1) um tema que funcione como nó; 2) a possibilidade de retorno de significantes da história de cada um; 3) ler de modo inédito, ou pelo menos não estereotipada, a nossa falta de sincronia com nosso tempo.
Já devem ter se perguntando sobre que cartel é esse. É um cartel sobre Racismo Negro. Vale insistir que não é sobre segregação, afinal, é preciso dizer com todos as letras que é sobre racismo, não qualquer um, mas o racismo negro. Sem diluir na asséptica “segregação”, o mal-estar que o racismo negro produz na racionalidade, na sociedade e na história do Brasil. Café extra-forte…não é café sem cafeína, brigadeiro sem açúcar sem cacau e sem chocolate, vinho sem álcool.
Esse cartel ainda tem uma dificuldade a mais: é composto só por mulheres, à exceção de mim, o Mais-Um, e em boa parte, por mulheres negras. Talvez alguns se perguntem sobre qual seria o problema disso, arriscando a dizer que seria um falso problema, meramente imaginário. O fato de ser o único homem, Mais-Um, num cartel de mulheres e majoritariamente negras a respeito de racismo negro, pode ser entendido como uma questão precária, não analítica, e irrelevante.
Contudo, tais observações já testemunhariam suficientemente de onde lê o contemporâneo. Já é um modo de interpretação. Afinal, se você fizer parte de outro universo semântico, tiver outra história, compartilhar de outras formas de laços sociais e frequentar outras instituições, isso pode ser sim, um problema. A depender da gramática da qual partimos, teremos uma ou outra leitura.
Se num cartel clínico, a experiência comum pode ser a clínica, num cartel sobre racismo negro, este pode ser a experiência da qual seus integrantes partem. E isso não é, de modo algum, pouca coisa. Afinal, a rigor, racismo negro não é impressão que se tem, conceito que se compartilha, é violência que se sofre sobre a carne, pescoço, peito, cabeça, seja com joelho, bala, significantes, políticas genocidárias, ou inacessibilidade às universidades, por exemplo. Como teremos cada vez mais colegas negros e negras sem uma política de acesso não só à universidade, mas também acesso à saúde e acesso a diversas formas de assistência? Algumas universidades públicas, por exemplo, promovem não só políticas de cota, mas também políticas de permanência nas universidades, que envolvem diversos acessos inclusive à renda. Para que questões analíticas sejam pensadas por analistas negros e negras, indígenas, etc, na Escola, é preciso que eles cheguem às universidades antes. Não se preocupe, esse desvio foi mais em nome da pergunta do “que é o contemporâneo” e de onde o lemos. Voltemos.
Assim como a negritude, o ser negro, mulher negra, ou ter-se tornado, ter-se descoberto negra, pode ser o próprio efeito do significante na história daquele sujeito. Mas com uma diferença fundamental: pode ser que o processo, aqui, não seja só de uma subjetivação, se entendido como modo de produzir algum distanciamento para poder tratar a coisa. Na verdade, pode ser o contrário. Tornar-se negro ou negra – afinal, trata-se disto, não de nascimento – implica um acontecimento de corpo. Tornar-se negro/a não exclui o corpo, a questão é oposta: passa por um acontecimento de corpo.
Se há um trajeto que passa de uma experiência à possibilidade de uma subjetivação, talvez haja, nestes casos, mais uma etapa. Talvez isso exija de alguns sujeitos uma nova modalidade de experiência. Não necessariamente inédita. Apenas outra, mais uma. O circuito seria: experiência – subjetivação – experiência. Quero dizer com isso que tornar-se negro, mulher negra, não é uma aventura só significante. É sobretudo de um corpo pulsional.
Conceição Evaristo diz que se trata de escrever a partir da vivência e da experiência de mulher negra. Portanto, escrever, publicar, ler, são atos políticos. Tal como também o é, fazer a palavra de arte virar ciência. Contrapelo do trajeto freudiano de uma epistemologia científico naturalista a uma estética literária necessária para tratar daquilo que a ciência não lhe conferiu.
Fazer da escrita, da leitura, da experiência, uma produção que seja objeto científico, seria uma ciência que passa pela experiência e não meramente como algo falado pelo outro. Vem daí o valor do coletivo numa política de citações, que aliás, demorei a compreender. Escutar essas pessoas que apostam nas citações de autores e autoras negras e negros, antes me parecia um excesso ou preciosismo. Demorei a entender que é uma política. Uma política epistêmica, histórica, epistemológica, uma política que passa pelo corpo, ou pelos corpos. É uma das formas de fazer um ato. Com isso buscam novos significados, desconstrução de imaginários, que, de outro ponto de vista nem parecem ser imaginários, tamanha a eficácia que têm de colonizar nossos pensamentos e epistemologias.
Mantendo-me no mesmo livro (2021), lembro-me de Tarrab destacando o que é a política lacaniana. Em resumo, é tratar o real pelo coletivo, tratar o real do laço social pelo coletivo. Pois bem, lendo estas autoras negras comecei a entender que a negritude, ser negra ou mulher negra, passa necessariamente por uma coletividade. Há um lugar de destaque para esse coletivo que precisa ser levado à sério. Temos o hábito de pensar que o coletivo é necessariamente um obstáculo ao singular. Ao mesmo tempo, podemos dizer que a política lacaniana é uma política da enunciação. Neste caso, o valor do cartel é de preservar uma enunciação que não é coletiva. Parece que caí numa contradição. Entre uma coletividade e uma enunciação que não seja coletiva.
Entretanto, queiramos ou não, o cartel, o passe, a Escola, são, a bem da verdade, dispositivos coletivos. O que mostra que, até para haver uma enunciação que não seja coletiva, é preciso haver uma dada relação com o coletivo.
As questões sobre racismo negro, negritude, feminismo negro, relações étnico-raciais, produzem significantes como “ancestralidade”. Mas este é um tema para outro momento.
Enfim, para concluir, Miller chama a atenção para um artigo definido a respeito do cartel. Este não é um dos meios para trabalhar. O cartel é o meio para executar o trabalho. É o princípio de elaboração. Com isso, posso dizer que 1) é fundamental que homens e mulheres negras cheguem via cartel, por ser o meio, o princípio de elaboração; 2) diante do contemporâneo, para não sermos comentaristas esportivos, somos todos analisantes. Por isso, penso que o fundamental de negros e negras chegarem via cartel é também uma oportunidade, pelo menos para mim, para pensar o Mais-Um realmente como um líder pobre, empobrecido. Ou seja, é uma oportunidade para sermos todos analisantes frente a estas questões contemporâneas. Creio que não é fácil ser Mais-Um neste contexto. O que está mais próximo do cotidiano, frente ao novo, é sermos anacrônicos ao repetirmos fórmulas já suficientemente conhecidas. Afinal, como permitir uma enunciação, uma elaboração sem cometer epistemicídio? Como não embranquecer cabelo, corpos e palavras?
Permitir que estas figuras do contemporâneo adentrem pela porta da Escola de Lacan, penso, é uma das funções do Mais-Um, e ao propiciar isto, seria uma das maneiras de fazer do cartel um grupo especial. Sendo assim, cartelizantes: sejam bem vindos, bem vindas e bem vindes!
Bibliografia:
Brown, Nohemí Ibanez (Org). Cartel, novas leituras. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2021.
Comentário sobre o texto de Cleyton Andrade (EBP/AMP)
Por Valéria Beatriz
Cleyton Andrade trouxe questões importantes para uma discussão entre vários, a partir da proposta por ele trazida, de “conversar sobre as dificuldades do mais-um”, no sentido de que “é fácil um cartel não funcionar”, como ele próprio coloca, haja vista a presença de impasses que permeiam esta experiência que leva em conta a questão da extimidade. Destacando o significante “contemporâneo” como referido a uma posição, a alguém em condições de transformar o tempo e colocá-lo em relação a outros tempos, Cleyton marca aí a indicação de uma posição capaz de ler de modo inédito o saber que se constrói. Essa seria uma posição do mais-um em um cartel, o qual, como ele nos lembra, é um líder pobre, no sentido da precariedade em relação ao saber, atento ao seu lugar de elemento não-homogêneo no conjunto e que, por isso, o descompleta. No bem dizer do poeta Leminski, “na vida ninguém paga meia”… Portanto, o cartel não é um “locus amoenus” e, sim, tributário da lógica não-toda e da enunciação.