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Qual é o estatuto da palavra do Mais-Um no trabalho de Cartel?

Zelma A. Galesi[1]

O Cartel como sabemos faz parte do que Lacan nos deixou como legado da Formação do analista, assim como a Supervisão/Controle e a participação efetiva nas atividades da Escola.

Sem esquecer que “a lógica que orienta o ensino de Lacan é a de colocar no centro da formação do analista a sua própria análise, pois essa é a zona em que desfalecem os saberes que se ensinam pela via exterior”.[2]

Temos que considerar, para começar a interrogar a questão proposta, partir dos seguintes pontos: em primeiro lugar, considerando que só há Cartel, quando o Mais-Um é também um analisante. A meu ver, essa é uma condição sine qua non para que um Cartel se diferencie de um grupo de trabalho.

Em segundo lugar, que aprendizagem não é formação, pois, segundo Lacan a formação verdadeira consiste sempre em saber “ignorar o que se sabe”[3].

Por quê? O trabalho de Cartel por essa via tende a transmitir um saber analítico, um saber que pode ser construído, pela zona êxtima, através dos textos que nos circundam pelo laço com a Escola.

Podemos supor, antes de mais nada, que o Mais-Um/analisante seria não incauto ( não tolo) do ideal que se instala na nossa Formação, “pois é uma formação que deve respeitar a falha de saber, mas a confrontação dessa falha é traumática, pois ela produz uma divisão subjetiva”.[4]

Dessa maneira, não é qualquer coisa o desejo de fazer cartel, pois tal como a experiência de análise, o que se revela com o trabalho é a ilusão das funções de domínio e controle do eu com respeito ao psiquismo, ou seja, que o lugar do desconhecimento do eu, possa ser ocupado pelo sujeito do inconsciente, é desde essa posição que a escolha da temática e da questão pessoal para o cartel, devem surgir.

Mas estejamos advertidos que todo grupo responde a lógica do discurso do mestre, incluindo o grupo analítico. Então, é preciso um manejo, para não afogar e destruir o discurso analítico, também no trabalho de cartel.

Pois, Lacan foi levado a inventar essa ferramenta de trabalho ao mesmo tempo em que criava sua Escola. Queria, assim, uma Escola que dispensasse os didatas e as palestras, para estar o mais próximo possível do discurso analítico. Um pequeno grupo formado para produzir ganho de saber. De tal forma, que o não-sabido seja ordenado, como arcabouço de saber.

Sem dúvidas nesse dispositivo, os Cartelizantes se deparam com seu próprio desejo de saber, o que possibilitará trazer à tona fragmentos, às vezes esboços, sempre de seu lugar de analisante.

Dessa maneira, podemos lançar a nossa questão para o debate com os colegas: Qual o efeito da palavra do Mais-Um? Seria possível produzir, no decorrer do trabalho, alguma retificação subjetiva?

Sabemos que no dispositivo analítico, o silencio e não só a palavra são operativos e que esse par é uma condição indispensável para que uma retificação ocorra, pois é uma palavra tomada pela suspenção que o silencio organiza. Sendo que toda palavra pela via da transferência, rapidamente tem o valor de uma palavra verdadeira.

Se a questão de cada um está atrelada à transferência à Escola e também aos seus membros, surge dai um novo laço social, que nos permitiria  medirmos a possibilidade do simbólico moderar o real. O cartel torna então possível extrair – um a um – esses saberes que não podem ser ensinados, mas que podem ser transmitidos.

Se Freud e o primeiro Lacan sustentaram fundamentalmente a interpretação, no último Lacan a prática da psicanálise se sustenta no ato analítico, ou seja, o par clássico inconsciente-interpretação estaria amarrado ao ato do analista e também ao desejo do analista. Sabemos que a interpretação concerne à tática, no ponto mesmo em que “uma interpretação é antes de tudo um significante que atinge, e que faz ondas,[5] em contrapartida o ato analítico se liga a estratégia e a política da psicanálise.[6]

Acredito que podemos nos utilizar do ato analítico no trabalho de cartel. Lembrando que o estatuto desse ato é o de não se pensar, não se calcular, pois, é um ato sem Outro. Para Lacan, em seu ultimíssimo ensino uma das condições importantes na formação do analista é o de saber não ser sujeito do inconsciente na experiência, sendo que não existe o analista enquanto não existe o ato.

Os que chegam demandando fazerem cartel, são “candidatos a” …, inúmeras vezes é necessário um ato, ou uma interpretação, para que se constituam como cartel.  O mais comum é o grupo que se reúne por amizade sem avaliar se a temática seria um desejo de trabalho de todos, ou se haveria aí, questões particulares. Acreditam que por estarem enlaçados pela transferência à Escola e ao Mais-Um isso seria suficiente para fazer o cartel existir.  Verifica-se que para essas pessoas, a Escola está num lugar idealizado como grande Outro, sustentada pelo Discurso do Mestre.

No decorrer dos encontros, pelo laço amoroso, tentam de várias maneiras fazer existir a temática proposta, e construir uma questão. Mas, o que se observa ao contrário é que esse esforço resulta num fracasso, pois nem todos conseguem entender o que está sendo proposto. As construções aleatórias invariavelmente tomam conta do trabalho.

O mal-estar começa a predominar e as questões particulares embora estejam sendo elaboradas começam a perder o seu encaminhamento. É necessário, um corte marcando o desvio das construções totalmente equivocadas em relação a temática e a ausência de uma questão que possibilite a formalização de um cartel.  Isso possibilita que os membros que não tem empatia com a temática se afastem, muitas vezes outras pessoas entram no grupo, para que o trabalho de cartel possa ter um porvir.

Para concluir, queremos afirmar que o que está em jogo, seja na interpretação que produz ressonâncias, ou no ato analítico é a posição do Mais-Um/analisante, “que não está do lado do grande Outro, mas que pode fazer-se suporte do objeto pequeno a, ao se abster de todo ideal de analista”.[7]


 

[1] Zelma Abdala Galesi, psicanalista, Membro da EBP/AMP, Formação em Psicanálise na ECF-Paris.
[2] Miller, J.-A. ¿Como se forman los analistas? “Para introducir el efecto-de-formación”. Buenos Aires, Grama, 2012, p.17.
[3] Miller, J.-A. ¿Como se forman los analistas? Ídem, p.16.
[4]  Brodsky, G. Retour sur la pratique analytique: “Le Chaudron percé. La cause Freudienne, nº 51, Paris, mai 2002, p.117.
[5] Miller, J.-A. Point de Capiton, Cours de L’orientation Lacanienne, Paris, École de la Cause Freudienne – 24 de juin de 2017.
[6] Esqué, X. ¿Como se forman los analistas? “O ato analítico y prática de la interpretación”. Idem, p. 25.
[7] Lacan, J. Le Séminaire, livre VIII: Le transfert, Seuil, Paris,2001, p.452.

Comentário sobre o texto de Zelma Galesi: “Qual o estatuto da palavra do Mais-um no trabalho de Cartel?”

Por Valéria Beatriz

 Vou destacar um ponto norteador no texto de Zelma, que penso esclarecer sobre a elaboração de um saber inédito nesta porta que se abre à Escola: “só há cartel quando o Mais-um é também um analisante”.  Temos como orientação que, sendo qualquer um, o Mais-um deve ser alguém. Conforme depreendo a partir do texto, o Mais-um, além de ser um analisante, deve também estar enquanto posição analisante, sendo a partir daí que pode consentir com a lógica não-toda do dispositivo. Esta posição analisante do Mais-um/analisante é algo que se transmite e dá a dimensão de uma precariedade em relação à idéia de progresso, para se encontrar aí pontos de fuga que permitam fissurar, furar o saber e poder operar contra o ideal de progresso e dominação, sustentando a aposta no cartel. A meu ver, essa posição analisante é que constitui o Mais-um, e não o contrário. Seguindo uma questão lançada por Zelma, estaria nesta dupla vertente, numa função dobradiça do Mais-um (analisante e posição analisante) uma aposta de possíveis efeitos da palavra do Mais-um?


 Comentário sobre o texto de Zelma Galesi

Por Marcia Stival Onyszkiewicz

Zelma escreveu um texto que nos permite conversar sobre variados assuntos envolvendo a presença do Mais-um. Me senti instigada a pensar na articulação da incidência da palavra do Mais-um com a posição analisante e fui pelo seguinte caminho: se a palavra do Mais-um pode tocar de modo contingencial os membros de um cartel, levanto uma aposta de que as provocações geradas e explicitadas nos trabalhos escritos apontam, parcialmente ao menos, para esta posição analisante do Mais-um que ao invés de tamponar com respostas, pode favorecer enunciações. Zelma que você acha?

Outro ponto que destaco envolve a posição do Mais-um diante dos equívocos que dificultam a sustentação um cartel.  Zelma salienta a relevância do “corte” para marcar o desvio que impossibilita a formalização de um cartel. Para conversar com esta colocação, extraio uma passagem do texto de Raquel Cors “Quatro, Mais-um, sem dois”*, no qual ela diz: “ O que se constata na experiência do cartel, e na própria vida! Claro, é que não há a última palavra a propósito do ‘saber’. O que há é um vazio de saber.” (p.210) Me perguntei se estaria na inscrição de um corte a possibilidade de provocar um vazio e com isto,  agarrar algo que direcione para uma transferência de trabalho.  Zelma, gostaria de te escutar um pouco mais falando sobre o corte.

*CORS, Raquel. Quatro, mais-um, sem dois. In.: BROWN, Noemi (org.). Cartel, novas leituras. EBP: 2020.
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