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dizer que ela era uma bagunça bárbara dificilmente

compreensível), mas tão somente que eu já sabia me

localizar quase automaticamente nesta desordem e

que, portanto, ela se tornara para mim – através do

hábito – uma nova ordem (ou seja: uma bagunça

muito bem arrumadinha), sem a qual eu me sentia

miseravelmente desorientado.1

Por outro lado, a esta altura da vida (com já

quase cinquenta anos), era inevitável reconhecer

o quanto este repertório básico (formado desde

os anos de colégio e graduação na Faculdade)

era relativamente limitado, previsível e apenas

transformável minimamente através de um

laborioso esforço. Walter Benjamin figurava assim

desde há muito (mesmo que agora ele já pudesse

parecer datado e criticável em muitos pontos) como

um mestre (insubmisso e radical) de pensamento da

modernidade, assim como o eram também autores

como Nietzsche e Georges Bataille (ou, em uma

esfera mais puramente literária, Edgar Allan Poe,

Baudelaire, Proust e Kafka), o que hoje – devido

a uma feliz e árdua ampliação e diversificação do

meu repertório (que não caberia aqui pedantemente

enumerar) – apenas demonstrava o quanto de

comum (em uma certa formação universitária nos

anos 80 do século passado) havia nele, não sendo

de fato possível viver de todo (sobretudo quando

jovem) fora do espírito da época.

O pequeno dossiê benjaminiano sobre livros

e colecionismo (reunido rápida e negligentemente,

depois do primeiríssimo momento da mudança, a

partir do ensaio-núcleo “Desempacotando minha

biblioteca”) poderia ele mesmo, composto de

exemplares vários o mais das vezes ordinários, ativar

quase imediatamente algumas ondas de recordações

das situações passadas nas quais foram adquiridos,

em passeios por cidades e lugares diversos. O mais

antigo volume (deste breve dossiê W. Benjamin) é

uma reunião de ensaios organizada e traduzida para

o espanhol por Jésus Aguirre sob o título de

Discursos

1

W. Benjamin, neste ensaio, após falar da

“desordem habitual” dos livros que compõem a sua

biblioteca, coloca a seguinte questão propositiva: “Pois

o que é a posse senão uma desordem na qual o hábito se

acomodou de tal modo que ela só pode aparecer como

uma ordem?” (“Desempacotando minha biblioteca”,

p. 228). Pouco depois ele generaliza não sem alguma

razão: “Assim, a existência do colecionador é uma tensão

dialética entre os polos da ordem e da desordem.”

(

Ibidem

).

interrumpidos I

, publicada pela Taurus em 1973 e

que adquiri em 1979 (juntamente com

Haschish

,

traduzido pelo mesmo Jésus Aguirre) na hoje para

mim saudosa livraria do José Maria Gomes no

Maletta, onde, desde o tempo da UMES, eu ia com

alguma frequência para contemplar as novidades

marxistas o mais das vezes em traduções espanholas.

Neste volume era possível encontrar o maior e

relativamente desconhecido ensaio de Benjamin

sobre o colecionismo (ainda não publicado em

livro em português até recentemente e ausente, por

exemplo, dos dois volumes:

1. Mythe et violence

e

2.

Poésie et Révolution

, que compõem a primeira edição

francesa das obras escolhidas deBenjamin, organizada

e traduzida por Maurice de Gandillac e publicada

pela Denoël em 1971): “Historia y coleccionismo:

Eduard Fuchs”, o que fazia dele uma pequena (e,

no momento presente, utilíssima) raridade. Suas

primeiras leituras, ainda nos anos 80, me trouxeram

não só informações sobre um colecionador alemão

aficcionado e erudito no domínio da cidade de Paris,

mas também o desconcerto dos nexos dialéticos entre

uma paixão pela propriedade e uma vocação para a

educação pública através da reunião e seleção de um

material reproduzido em fotos e publicado em livro

(em obras importantes, mas jamais consultadas por

mim, como

História da arte erótica

,

A caricatura dos

povos europeus

,

Os grandes mestres do erotismo

e

A

escultura Tang: Cerâmica funerária chinesa dos séculos

VII ao X

).2

No voluminho já bem manuseado

Je déballe

ma bibliothèque

(Paris: Payot & Rivages, 2000) eram

2

Da última releitura deste ensaio, que talvez

não fosse usar diretamente, pude colher, afortunado,

uma observação instigante de Benjamin na nota 49

que vinha logo após uma citação de Fuchs em que este

defende a orgia a partir de um critério antropológico

elementar [“(...) devemos ter bem claro que a orgia

forma parte do que nos distingue do animal. Este, ao

contrário do homem, não conhece a orgia... O animal se

retira da iguaria mais saborosa e da fonte mais cristalina,

quando aplacou sua fome e sua sede, e sua urgência

sexual geralmente se limita a breves e determinados

períodos do ano.”]. Ei-la, fragmento soberano e sem

contextualização, colhida como se ao mero acaso: “Seria

apressado pôr em conexão imediata o umbral entre

animal e homem, que Fuchs vê na orgia, com este outro

umbral que representa a posição ereta? Com ela aparece

na história natural algo inaudito até então: que no

orgasmo os amantes possam se olhar nos olhos. Só assim

se torna possível a orgia. E não tanto pelo acréscimo de

incentivos que o olhar encontra. Resulta antes decisivo

que a expressão da fartura, e inclusive da incapacidade,

chegue a converter-se em um estimulante erótico.” (p.

125).