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Mas seria, de fato, possível eleger esse livro em meio aos vários que poderiam cumprir esse papel na

vida de uma pessoa, sobretudo quando se trata de alguém que tem no ato da leitura um de seus maiores

deleites desde sempre? Talvez possamos ter um livro de cabeceira em cada um dos principais momentos

de nossa trajetória no mundo. Mas creio que um só na vida inteira é para poucos, e depende de diversas

circunstâncias.

De qualquer forma, a expressão no singular existe. Mas prefiro ler nesse singular a pluralidade que ele

encerra.

Quando a escritora japonesa medieval Sei Shonagon intitulou o seu diário de

O livro de cabeceira

(ou

de travesseiro, como as tradutoras brasileiras da obra preferiram chamá-lo), ela se valeu de um outro sentido

do termo, moldado pelo contexto em que vivia. Isso porque, no século X, ainda existia o hábito entre os

japoneses letrados de manter um livro secreto dentro do travesseiro de madeira no qual encostavam a cabeça

para dormir. E esse livro foi adquirindo, aos poucos, várias acepções na cultura japonesa, como explicitarei

mais adiante.

Vale lembrar que Shonagon foi uma das figuras literárias mais importantes do Japão medieval,

integrando, ao lado de sua contemporânea e rival Murasaki Shikibu, autora de

História de Genji

, uma

plêiade de escritoras que fez surgir toda uma literatura em língua vernácula, num momento único da história

da literatura oriental. Sobre sua biografia, pouco se sabe. Consta que foi dama da corte da Dinastia Heian

e viveu em fins do século X, num ambiente social refinado, no qual predominavam os valores estéticos

e, em especial, o culto à poesia e à caligrafia. Dedicou-se, sobretudo, ao registro de detalhes da vida na

corte, documentando, com sensibilidade e não sem malícia, um mundo cuja realidade parecia ter abolido,

pela força dos rituais, as leis de gravidade que a sustentavam. Como afirma Maria Kodama, que traduziu

com Borges alguns excertos de

O livro de cabeceira

para o espanhol, a escrita de Shonagon “revela uma

personalidade de mulher aguda, observadora, bem informada, ágil, sensível às belezas e sutilezas do mundo,

ao destino das coisas, em suma, uma personalidade complexa e inteligente” 1.

Octavio Paz, no ensaio “Três momentos da literatura japonesa”, incluído no livro

Las peras del olmo

,

de 1957, explica que, no contexto em que Shonagon viveu, a vida era vista como um espetáculo, uma

cerimônia, em que os homens se apaixonavam pelas damas tanto por causa da elegância de sua escrita

quanto pela engenhosidade de seus versos.

O diário que ela escreveu foi precursor de um gênero tipicamente japonês conhecido como zuihitsu

(escritos ocasionais) e está marcado pelo traço da heterogeneidade. Nele, a escritora inseriu 164 listas de

coisas agradáveis, desagradáveis, irritantes, esplêndidas etc. – encenou intimidades vividas e postiças, recriou

sensações e criou guias diários para a vida cotidiana na corte. Fez ainda observações sobre plantas, pássaros e

insetos, além de críticas dirigidas aos homens medíocres. Tudo isso numa escrita transparente, ágil e de uma

inquietante modernidade, por meio da qual podemos ver, como apontou Paz, “um mundo milagrosamente

suspenso em si mesmo, perto e distante ao mesmo tempo”. Mundo

up to date

, com os olhos fixos no

presente, movido pelo sentimento de fugacidade das coisas.

A propósito desse gênero literário zuihitsu, sabe-se que, inicialmente, ele definia os diários mantidos

dentro dos travesseiros de madeira, como o de Shonagon, passando, mais tarde, a designar livros afrodisíacos

para amantes insones, até se converterem em manuais de sexo para amantes entediados ou para iniciar no

sexo os inocentes. Em sua fase tardia, eles se inseririam, portanto, dentro do que Foucault, com o intento

de diferenciar as formas de se lidar com a sexualidade no Ocidente e no Oriente, chamou de

ars erótica

, em

1

KODAMA.

Prólogo

, p. 9. Tradução minha.