Table of Contents Table of Contents
Previous Page  103 / 155 Next Page
Information
Show Menu
Previous Page 103 / 155 Next Page
Page Background

5

contraponto à

sciencia sexualis

, predominante no mundo ocidental. 2 No que tange à

ars erótica

, o prazer é

concebido como uma arte e, como explica Octavio Paz – que também incursionou no estudo das diferenças

entre as concepções ocidentais e orientais de corporalidade –, “não há a mais leve preocupação com a saúde,

exceto como condição do prazer, nem com a família, nem com a imortalidade”. Em resumo, o prazer

aparece como uma ramificação da estética. 3

O livro de cabeceira, assim, pode ser tomado como um livro que dá prazer e inicia o leitor/leitora nas

artes e deleites do amor. E por isso mesmo, é para ser lido na cama.

Foi com vistas a explorar todos esses sentidos do “livro de cabeceira” que o cineasta britânico Peter

Greenaway compôs

The pillow book

(1995), tomando como ponto de partida e principal referência literária

o diário da escritora japonesa. No filme, o cineasta promove uma fusão entre livro, filme e corpo, associando

página, tela e pele. Essas articulações funcionam como o suporte de uma narrativa ao mesmo tempo

contínua e descontínua, visual e textual, erótica e escatológica, na qual também se imbricam gêneros sexuais

e textuais, culturas do Oriente e do Ocidente, línguas, registros de escrita e de imagem, tempos, espaços e

tradições distintas.

A trama do filme, ao contrário do que se pensa, não foi extraída nem adaptada do livro de Shonagon

(que é um livro sem enredo), mas criada pelo próprio Greenaway. Ela se resume na história de uma japonesa

de Kyoto, Nagiko, que quando criança tinha, a cada aniversário, o rosto caligrafado pelo pai escritor, num

ritual de celebração que marcaria toda a sua história de vida. Na idade adulta, vivendo em Hong Kong,

Nagiko começa a buscar amantes que escrevam no seu corpo, de forma a reeditar a cena escritural paterna.

Mas após o encontro com Jerome, um tradutor inglês bissexual, que a desafia (ou incita) a assumir ela mesma

o papel de escritora, a moça passa a escrever livros em corpos de outros homens, de idades e compleições

físicas variadas, enviando-os a um velho editor com quem Jerome mantinha uma ligação amorosa. Por

coincidência, o mesmo editor que explorara o pai da protagonista nos tempos remotos de Kyoto. Depois

que Jerome morre e tem o corpo escrito por Nagiko, o editor, enciumado, manda desenterrar o cadáver do

rapaz, arranca-lhe, cirurgicamente, a pele caligrafada e a transforma literalmente em um livro.

O livro-diário de Sei Shonagon tem uma presença incisiva ao longo de todo o filme, por figurar tanto

como uma fonte provedora de imagens e palavras para a composição da trama, quanto como uma espécie

de personagem, dotado de concretude física e convertido em objeto de culto (o seu único livro de cabeceira)

por parte da protagonista. O livro medieval, assim, é trazido por Greenaway à flor da tela, potencializado

por sucessivas sobreposições de imagens e textos. Os ideogramas da escrita oriental aparecem na tela como

metáforas vivas do corpo. E dialogam, de forma produtiva, com diferentes tipos de textos que proliferam ao

longo da película, e que vão de passagens bíblicas em inglês e latim a letreiros luminosos de lojas e livrarias,

títulos de livros e grafites. Para não mencionar o uso estratégico das legendas em inglês correspondentes às

falas e escritas estrangeiras do filme, que acabam adquirindo também, pela força da caligrafia, uma função

poética enquanto texto inscrito/traduzido nas margens da tela. Inscrições em japonês, francês, italiano,

inglês, chinês, com caracteres kanji, hiragana e katakana, letras góticas e fontes exóticas também cobrem as

peles dos personagens e a superfície da tela, num jogo babélico de impressionante força sinestésica.

Dessa forma, o filme se converte também num livro múltiplo e heterogêneo, antigo e atual, oriental

e ocidental ao mesmo tempo. A ideia de “livro de cabeceira”, assim, também se pluraliza, fazendo jus à

singularidade multíplice da expressão.

2

Segundo Foucault, a China, o Japão e a Índia dotaram-se de uma

ars erótica

, em que “a verdade é extraída

do próprio prazer, encarado como uma prática e recolhido como experiência”. Já a nossa civilização, segundo ele,

“pelo menos, à primeira vista, não possui ars erótica”. “Em compensação”, completa, “é a única, sem dúvida, a

praticar uma scientia sexualis”. Cf. FOUCAULT.

História da sexualidade 1

, p. 57.

3

PAZ.

Conjunções e disjunções

, p. 98-99.