Table of Contents Table of Contents
Previous Page  113 / 155 Next Page
Information
Show Menu
Previous Page 113 / 155 Next Page
Page Background

15

fórmula – não há relação sexual –, Lacan nos diz no terceiro capítulo do

Seminário

, livro 20:

Mais, ainda

,

que ela só tem suporte na escrita, no que a relação sexual não se pode escrever.

Tudo que é escrito parte do fato de que será para sempre impossível escrever como tal a relação sexual.

A escrita tem origem no impossível de escrever. “A letra vem ao primeiro plano a cada vez que o sujeito

se vê confrontado com a inconsistência do Outro” (MANDIL, 2012, p. 63). O que se escreve do real

do inconsciente numa análise implica a modalidade lógica da contingência, isto é, o que cessa de não se

escrever. Quando o sujeito do inconsciente é colocado a trabalho, reabre-se a fuga do sentido, condição para

que algo da escrita se produza.

A escrita da clínica: formalização e testemunho

Para um analista, a escrita da clínica abre uma série de questões: escrever caso por caso, articular um

saber sobre a experiência do real próprio de cada caso, zelar pelo sigilo, publicar o caso, localizar os efeitos

da escrita do caso. Todas essas questões são discutidas cuidadosamente por Freud nas “Notas preliminares

ao relato do caso de Dora”. Nessas notas, Freud assume a importância das duas linhas de estudo do caso

clínico, a saber, a perspectiva do caso único e a perspectiva do caso típico. “Na minha opinião”, disse Freud,

“o médico assume deveres não só em relação ao paciente individual, mas também em relação à ciência; e seus

deveres para com a ciência significam, em última análise, nada mais que seus deveres para com os inúmeros

outros pacientes que sofrem ou sofrerão um dia do mesmo mal” (FREUD, 1905/1976, p. 6). De uma parte,

buscamos a singularidade, isto é, o caso propriamente dito; e de outra parte, buscamos generalizar, articular

teoricamente, elaborar conceitos e matemas, pesquisar a casuística, fazer correlações entre os casos, recorrer

às formulações já estabelecidas, formalizar. A escrita da clínica convive, portanto, com o singular e com o

universal.

O fato de receber crianças psicóticas no consultório, que se implicaram no tratamento analítico

durante longo tempo, que obtiveram uma limitação do gozo em excesso e efeitos terapêuticos sensíveis,

foi determinante para a busca de formalização dessa experiência. O esforço de extrair da clínica da criança

psicótica um saber transmissível concerne aos deveres para com o caso e para com a ciência estabelecidos

por Freud.

Ainda que a escrita em psicanálise possa se deixar pautar pelo ideário do discurso universitário, segundo

os formatos conhecidos de monografia, dissertação, tese etc., somente o real do caso extraído de sua

lalangue

permite ao analista escrever a partir dos restos depositados no campo da transferência. Com Lacan, chamo

de escrita da clínica o recurso às letras lacanianas, que viabilizam a formalização, as letras dos matemas, dos

esquemas, dos gráficos, que transmitem o saber clínico.

Do ponto de vista da elaboração, há sempre para quem pesquisa e escreve o tensionamento entre o

saber clínico que se articula e peças soltas que se dispersam; entre o que se ordena da clínica por meio dos

matemas e o que permanece como resíduo ou como causa da formalização. A meu ver, é o que justifica

considerar a escrita da clínica segundo duas diferentes modalidades, a da formalização e a do testemunho.

Quanto a esse ponto, o testemunho, o texto de Enric Berenguer, “Testemunho: ensino irônico”, publicado

em

Opção Lacaniana

número 54, traz uma importante contribuição ao defender a ideia de que “todo ensino

psicanalítico participa do testemunho” (BERENGUER, 2009, p. 68).

O testemunho se refere sempre, de algum modo, ao limite do discurso, e inclusive

da formalização. Nesse ponto, a escrita chega a ser invocada como testemunho

eletivo de algo que se situa nos confins do saber e do real. Onde o discurso não

“diz”, testemunha. E, onde o testemunho do discurso desfalece, apela-se para o

testemunho da escrita. O ensino se caracteriza por buscar ativamente esse limite,

construí-lo. Falando e escrevendo sobre ele, mas fazendo com que o falado e o escrito