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Arrumando a biblioteca

no novo apartamento

É engraçado que uma certa experiência

perturbadora – a da desordem potenciada de uma

biblioteca sendo desempacotada em uma nova

residência (também esta ainda sendo basicamente

arrumada: por exemplo, num primeiro momento,

sem máquina de lavar roupa, sem micro-ondas, sem

aquecedor funcionando direito, sem conexão com a

internet, sem TV a cabo, sem cortinas ou persianas

em todos os cômodos...) – possa ter se dado sob o

signo irônico da procura do conhecido pequeno

ensaio de Walter Benjamin, “Desempacotando

minha biblioteca” (“Ich packe meine Bibliothek

aus”), que – em sua versão francesa que dá título

ao agora prático livrinho

Je déballe ma bibliothèque

da coleção

Rivages poche

– procurei inutilmente nos

caixotes com a etiqueta “quarto” (onde, na casa da

rua Venezuela

586, estava há já um bom tempo) ou “sala” (a

cujos livros poderia ter sido ajuntado por engano),

obrigando-me a um primeiro passeio por micro-

acervos diletantes conexos muito palatáveis, mas

que sabia de antemão destinados a não serem lidos

nem consultados nos próximos quatro meses, o que

o tornava – em meio ao tremendo cansaço de uma

mudança de uma casa habitada durante uns dezoito

anos – o candidato ideal para um primeiro plano

de uma breve organização de memórias recentes e

de reflexões sobre o que é (ou como é usada) uma

biblioteca no suporte tradicional do papel.

Mas o que a releitura posterior deste breve

ensaio de Benjamin iria primeiramente evidenciar

é o quanto eu estava afastado – neste momento

heroico de utilização de minha biblioteca reduzida a

ummínimo essencial possível – de toda uma reflexão

bibliofílica sobre o modo de aquisição de obras raras

(e eventualmente caras) que já quase não faziam parte

deste meu acervo ordinário e que em nada poderiam

me ajudar na mera e utilitária separação e organização

de uma pequena bibliografia básica para os cursos do

semestre (p. ex., os dicionários de Grego antigo, de

Latim, de línguas europeias modernas, de português,

as gramáticas do Grego antigo, os textos gregos e suas

traduções que iria ler ao longo do semestre, assim

como os comentários e obras genéricas pertinentes a

estes textos). Mas o primeiríssimo e básico momento

de leitura seria constituído apenas por uma revisão

rápida das seis primeiras lições de dois métodos de

Grego antigo, assim como por uma releitura do

artigo de James Redfield sobre o proêmio da

Ilíada

,

e do de Pietro Pucci sobre o proêmio da

Odisseia

. Já

estava (eu) suficientemente cansado com esta mera

e básica leitura utilitária (de um repertório técnico

de professor de aulas inadiáveis de Grego antigo)

e mal conseguia pensar no possível valor fetichista

daqueles objetos eventualmente transgressores de

sua primeira função prática: a leitura.

Apenas para a decoração provisória de uma

mesa da sala (mas talvez ambicionando no futuro

próximo um pouco de leitura diletante pontual),

separei então também algumas coletâneas de poemas

curtos “orientais” em traduções (

Les Quatrains

[

Rubayat

], de Omar Khayam,

Ottanta Canzoni

[

Oitenta Canções

], de Hafez, e

HAIKU: Anthologie

du poème court japonais

[

Antologia do poema curto

japonês

]) que nem cheguei a abrir, dando elas

assim, depois e retrospectivamente, a rápida e triste

impressão frívola de bibelôs de madame, cuja função

(além do tolo e inútil exibicionismo para a família)

seria somente consolar com a mera e luxuosa

possibilidade de um uso (ou seja: a leitura) que

nunca chegaria a se realizar. A única coisa que, na

hora H da mudança coincidindo com o começo de

semestre letivo universitário, consegui ler rapidinho

e com prazer foi o atônito capítulo 26 (“O que fazer

da vida?”) da re-achada autobiografia de Tostão

(

Lembranças, Opiniões, Reflexões sobre Futebol

).

No primeiríssimo momento da chegada dos

entulhantes caixotes até um canto da sala (junto ao

meu escritório) do novo apartamento, não tendo

ainda sido montadas as primeiras estantes de madeira

que ficavam em meu escritório subterrâneo (ou de

quintal) da rua Venezuela 586, pude apenas abrir