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Enfim,

O livro de cabeceira

é um filme em que a conjunção entre corpo e textualidade é levada às

últimas consequências, não apenas nos âmbitos temático e narrativo, mas também no que tange à própria

materialidade significante da linguagem. Sob essa perspectiva, o filme também se

produz sensualmente

, à

feição do que Barthes denomina

escritura

, ou seja, uma prática, um fazer, uma

poiésis

, que escapa a uma

existência meramente conceitual e narrativa, afirmando-se como “a ciência dos gozos da linguagem, seu

Kamasutra” 4. E é dessa maneira que a textualidade fílmica assume também uma explícita corporalidade, ao

se converter numa espécie de anagrama de nosso corpo erótico, associado a um livro.

A literatura, sob esse prisma, pode ser também associada no filme a “uma arte da tatuagem”, a qual,

segundo Severo Sarduy, “inscreve, cifra na massa amorfa da linguagem os verdadeiros signos da significação”

5. Mas tal inscrição (indelével) nunca é possível sem ferida, sem perda. Nas palavras de Sarduy:

A escritura seria a arte desses grafos, do pictural assumido pelo discurso, mas também

a arte da proliferação. A plasticidade do signo escrito e seu caráter barroco estão

presentes em toda literatura que não esqueça sua natureza de inscrição, o que se

poderia chamar de sua

escrituralidade.

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Pode-se dizer que esses efeitos escriturais do filme devem-se exatamente à forma como Greenaway

incorpora o texto de Shonagon no filme.

Vale acrescentar que os livros sempre fizeram parte do universo artístico de Greenaway. Outro filme

centrado na imagem do livro é

Prospero’s books

(no Brasil,

A última tempestade

), de 1991, uma transcriação de

A tempestade

, de Shakespeare. Nele, a obra de Shakespeare é retomada a partir dos 24 livros que Próspero, o

duque de Milão, teria levado para o exílio após ser destituído do poder pelo próprio irmão, Antônio. Seriam

esses os “24 livros de cabeceira” do personagem – livros inesgotáveis, que continham todo o conhecimento

do universo, e que o teriam ajudado a enfrentar o naufrágio, encontrar e colonizar a ilha onde passou a viver,

povoá-la com espíritos e espelhos, educar a filha Miranda e escrever a própria história da qual é personagem.

Aqui retomamos a ideia inicial desta apresentação quando me reportei ao sentido de “livros de

cabeceira” como aqueles que constituem o repertório de livros que define/resume a história de alguém com

o mundo das letras. Livros medulares, imprescindíveis e inesquecíveis, que não deixam também de ser casos

de amor na vida da pessoa que os leu e que sempre voltam à cena de leitura nos momentos necessários.

Maria Esther Maciel

Referências:

BARTHES, Roland.

O império dos signos

. Trad. Leyla Perrone. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

BARTHES, Roland.

O prazer do texto

. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1977.

FOUCAULT, Michel.

História da sexualidade 1

– a vontade de saber. Trad. Maria Thereza

Albuquerque e J. A. Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1984.

KODAMA, Maria. Prólogo. In: SHONAGON, Sei.

El libro de la almohada

. Selección y

traducción de Jorge Luis Borges y Maria Kodama. Madrid: Alianza Editorial, 2004.

PAZ, Octavio.

Conjunções e disjunções

. Trad. Lúcia Teixeira Wisnik. São Paulo: Perspectiva, 1979.

4

BARTHES.

O prazer do texto

, p. 11.

5

SARDUY.

Escrito sobre um corpo

, p. 53.

6

SARDUY.

Escrito sobre um corpo

, p. 54.