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Psicanálise e Política

Carla Serles (EBP/AMP)

O brocardo lacaniano “o inconsciente é a política” requer dos psicanalistas um constante aggiornamento, considerando-se que tanto o inconsciente como a política, são campos sensíveis às transmutações civilizatórias, sobretudo na época em que o Outro não existe.

A priori, esboçam-se ao menos duas questões: Qual ou quais concepções da política tem relevância para a psicanálise? Quais as formulações teóricas concernentes ao inconsciente são possíveis a partir desse

pressuposto lacaniano?

Miller diz que esse axioma é derivativo de outro preceito de Lacan: “O inconsciente é o discurso do Outro”². Nesse ensejo, o inconsciente é transindividual, faz “laço com o Outro, seja através do jogo significante, seja através do jogo com a letra” ³, o que exige do analista, em sua ética, um decidido interesse pela civilização e seus inerentes efeitos de mal-estar, bem como pela política, ainda que seja pela via do horror.

Logo, faz-se necessário não apenas estar à altura da subjetividade de sua época, como também saber orientar-se nela.

Aqui delineia-se mais uma interrogante: a partir de que viés o analista pode ser subversivo e, desse modo, contribuir com o futuro da psicanálise?

Éric Laurent alerta para os riscos aos quais se precipita um analista fechado em sua reserva e insensível às formas de segregação. Ele diz que se um analista não ultrapassar essa posição de suposta neutralidade, provavelmente, invalidará o seu papel histórico.

Segundo Marie-Hélène Brousse, a neutralidade do analista deve se restringir à relação com o eu e seu sonho de adaptação social e, com o supereu e seu imperativo de gozo.

Assim sendo, a política da psicanálise pode ser pensada como a política do sintoma, principalmente naquilo que o sintoma apresenta de desarranjo, disfunção e/ou refração às exigências do mestre contemporâneo. Esse mestre apresenta-se aparelhado com sua irredutível engrenagem de manipulação dos semblantes, engendrando o sequestro e o ofuscamento do sujeito. Ademais, produz-se uma homogeneização dos modos de gozo, em decorrência da incessante oferta do objeto a apenas como mais-de-gozar, desconectado de sua face de causa de desejo.

Outrossim, com o advento dos discursos das tecnociências e do capitalismo, a pólis se transforma, já que as redes se convertem no habitat predileto dos corpos falantes.

Esses processos determinam a anulação da divisão subjetiva e do “pequeno detalhe que faz a singularidade onde se aloja o sintoma”. ⁴

Sob a perspectiva da distinção do discurso analítico em relação aos outros discursos, a experiência de uma análise busca modificar a relação do sujeito com os significantes-mestres, modificar a posição do sujeito a

partir do lugar que ele ocupa no discurso do mestre”. ⁵ Dessa forma, “é isso que dá ao analista o dever de política: devolver ao sujeito a escolha decidida dessa relação com o significante-mestre”. ⁶

As últimas formulações sobre esse tema, no âmbito do Campo Freudiano, indicam que, a partir do ultimíssimo ensino de Lacan reputa-se uma política orientada para o real, em que se consideram “os elementos contingenciais instáveis e quase sempre contrários as normas dominantes”. ⁷

A prática da psicanálise orientada para o real, permite entrever que “o trabalho da assonância, quer dizer da materialidade sonora fora da tirania do sentido, pode promover a descoberta de novas formas de laço como guia”. ⁸

Tendo em vista os aspectos abordados, poder-se-ia propor a política do sinthoma ou do acontecimento de corpo? Esses são alguns dos inúmeros aspectos passíveis de serem abordados no tocante a esse eixo.

Esperamos acolher trabalhos que nos permitam avançar nessa discussão.


REFERÊNCIAS
1 LACAN, J. O Seminário, livro 14: A lógica do fantasma (1966-1967). Inédito.
2 MILLER, Jacques-Alain. Intuições Milanesas II. 1. Opção Lacaniana online nova série. Ano 2, Número 6, novembro, 2011.
Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_5/Intui%C3%A7%C3%B5es_milanesas.pdf.
3 GUARDADO, Cássia Maria Rumenos et al. Introdução. In: BROUSSE, Marie-Hélène. O
inconsciente é a política. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2018. p. 22.
4 VERAS, Marcelo. Comentário sobre as Intuições de Jacques-Allain Miller. Um por um – Boletim Eletrônico do Conselho de Deliberativo da EBP: Psicanálise: os fins, os princípios os meios…, [s. l.], ed.409, 4 dez. 2020.
5 BROUSSE, Marie-Hélène. O inconsciente é a política. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2018, p. 34.
6 Ibidem, p. 35.
7 SANTIAGO, Jésus. Acontecimentos políticos de corpo. In: Correio. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, ano 2023, n. 90, ed. 90, p. 100, abril 2023, p. 100.
8 BROUSSE, Marie-Hélène. Las Memorias y El Olvido huellas y marcas. In: Enlaces, n.27, p. 15.
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