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testemunhem. Na realidade, não há ensino sem buscar esse limite; do contrário, cai-se
no saber estabelecido (BERENGUER, 2009, p. 70).
Berenguer discute uma gama de testemunhos que não se vinculam unicamente ao dispositivo do
passe numa escola lacaniana e sim a outros dispositivos de transmissão do saber também incluídos na
Escola. Ele identifica formas plurais de testemunho na obra de Freud e ao longo dos seminários de Lacan,
o que certamente confere à psicanálise um estatuto particular de ciência. Considera que o testemunho
em Freud adquire a forma de elaboração teórica e não de biografia e traz sempre uma dupla referência de
sua experiência como psicanalista e como analisante, a exemplo da sua
Interpretação dos sonhos
, obra que
inaugurou para Freud a psicanálise.
O psicanalista também verifica como que, por vezes, a obra de Freud assumiu para Lacan o valor de
testemunho, como, por exemplo, no seu comentário sobre o sonho de Irma. Nos seminários de Lacan,
o autor identificou formas de testemunho que perpassam sua elaboração teórica. São elas: um elemento
autobiográfico incluído como material em um texto teórico; os aportes do auditório dos seminários; o
que Lacan recolhia de sua prática de analista como testemunhos de seu ensino e que assume o estatuto de
prova ou demonstração. Sob o termo testemunho, Enric Berenguer inclui também uma série de chamadas
de Lacan endereçadas aos seus ouvintes, interpelando-os ou convocando-os a um tipo de resposta, fosse de
confirmação, de rejeição ou de objeção à sua fala. Concordando com Berenguer, encontramos em Lacan,
nas diversas etapas de seu ensino, a presença da enunciação, visto que nem o significante mestre nem o saber
ocuparam o lugar de agente de seu trabalho.
J.-A. Miller também inclui a perspectiva do testemunho no ensino de Lacan. Ele recolhe esse dado do
“Prefácio à edição inglesa do Seminário 11” a propósito dos casos de urgência. Cito Lacan: “assinalo, que,
como sempre, os casos de urgência me atrapalhavam enquanto eu escrevia isso. Mas escrevo, na medida em
que creio dever fazê-lo para ficar a par desses casos, fazer com eles par”” (LACAN, 2003, p. 569). Isso vale
“como um testemunho” (MILLER, 2010, p.19), afirma o psicanalista.
A possível afinidade entre o ensino e o testemunho em psicanálise vai conferir à elaboração e à
produção teórica um lugar de enunciação. Por não ser um cientista integralmente, o analista e seu discurso
não dispensam a implicação do desejo do analista. É neste sentido que não somente a clínica, mas também o
ensino pode ser irônico ao portar a marca da inconsistência do Outro. A teoria, assim como o discurso, pode
ficar na posição de
semblant
. A autenticidade do saber depende da resposta que cada sujeito dá ao ponto de
inconsistência do Outro, onde não há uma só resposta válida para todos.
Enquanto o cientista coloca o significante a trabalho para produzir um saber, porém à custa da
exclusão da subjetividade e de sua causa, o analista não a exclui de sua ciência. Por consequência, ele pode
se deparar com o trabalho do inconsciente, que, com frequência, se imiscui na construção de um texto, na
elaboração de uma hipótese, de uma tese. Trabalhei esse ponto no artigo “O real da clínica e a ciência do
sonho”, publicado na
Revista Curinga
n. 31, relatando um sonho que, durante a escrita da tese, contribuiu
decisivamente para a formulação do problema real causa da pesquisa e para a seriação dos casos clínicos
em construção. A leitura do texto de Enric Berenguer levou-me a retomar essa questão para inseri-la na
perspectiva do testemunho. Acrescento aqui a contribuição do texto de Márcia Rosa, ”Psicanálise: uma
ciência das intimidades?”. Este artigo discute a especificidade da psicanálise enquanto uma ciência que não
exclui o real, uma ciência êxtima. Esta formulação se sustenta na noção lacaniana de “extimidade”, isto é, de
exterioridade íntima, que concerne à Coisa no âmago do ser.