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Retórica da elaboração
poética. Notas sobre Freud e a
escrita
A um jovem que hesitava em encarar uma análise,
Lacan, para marcar o término das entrevistas preliminares,
diz-lhe:
Todos acabam sempre se tornando um
personagem do romance que é a sua
própria vida. Para isso não é necessário
fazer uma psicanálise. O que esta realiza
é comparável à relação entre o conto
e o romance. A contração do tempo,
que o conto possibilita, produz efeitos
de estilo. A psicanálise lhe possibilitará
perceber efeitos de estilo que poderão
ser úteis a você (LAURENT, 1992, p.
36).
A primeira coisa que salta aos olhos do jovem em
questão, que era Éric Laurent, é que a obra parece vir antes
do autor e ficar esperando por ele, que pode chegar tarde
demais. Essa bela passagem mostra-nos ainda outra coisa,
concernente ao que ocorre entre Freud e Lacan em termos
dos modelos literários que subjazem à prática clínica de cada
um.
O inconsciente freudiano caminha pari
passu com a forma narrativa, que é a
do romance goethiano. (...) A forma de
relato implicada tem suas imposições:
definição clara dos personagens,
separação entre comentário e
descrição, entre o dito espirituoso da
conversação pública e a ruminação
do monólogo interior. A prática
de Lacan é contemporânea de uma
estrutura narrativa transformada pela
escrita moderna, na qual o romance é
subvertido pelas contrações do tempo,
do espaço, dos personagens, do dentro
e do fora (LAURENT, 1992, p. 37).
Em outras ocasiões e textos, pude trabalhar a escrita
e o estilo de Lacan e suas relações com a escrita moderna.
No presente ensaio, gostaria de anotar algumas ideias acerca
da escrita freudiana. Vou me ater a um ou dois aspectos,
muitas vezes negligenciados entre os leitores de Freud. Trata-
se dos processos poéticos de amenização e ocultamento que
funcionam tanto na escrita poética e trágica, quanto na
escrita freudiana. Para abordar isso, pretendo ler uma pista
deixada por Freud sobre as relações entre
Édipo
e
Hamlet
,
na
Interpretação dos sonhos
, e retomada em seu artigo
“Dostoievski e o parricídio” (FREUD, S.
Arte, literatura e os
artistas
, 2015, p. 283-305).
Retórica da elaboração poética: atenuação,
ocultamento.
O catálogo das aberrações humanas foi descrito muitas
vezes, por muitos autores, muito antes da invenção da
psicanálise. A dificuldade de ler Freud é que, ali, o leitor se
reconhece. Quantas vezes a poesia épica e o drama trágico,
a filosofia de Diógenes a Sade, a literatura médica de Krafft-
Ebing ou de Esquirol, as homilias e as bulas, os códigos
penais e os arquivos de instituições como prisões, sanatórios,
monastérios, os relatos de viagens, a etnografia, a literatura
moderna, e tantas outras infindáveis fontes contribuíram para
o catálogo quase infinito das aberrações humanas? Relatos
de desejos e práticas incestuosas, de assassínios, sacrifícios
humanos e crueldades terríveis, de variações quase infinitas
de uso do corpo e da sexualidade, dos mais variados tipos de
loucura e insanidade povoam o imaginário da cultura desde
a mais remota noite dos tempos. O que há de chocante e
inaugural no discurso de Freud é que ele consegue trazer para
dentro do teatro da mente e da arena dos impulsos todo esse
espetáculo horrendo das aberrações. Mas quando o faz, não
há mais teatro, nem arena, nem espetáculo e nem aberrações.
As fronteiras entre o normal e o patológico perdem,
depois de Freud, sua confortável nitidez, que asseguravam
a nós, espectadores ou leitores, a distância suficiente que
nos protegia desses perigos longínquos. Os processos
psíquicos que conduzem ao adoecimento são os mesmos
que presidem nossa vida cotidiana mais banal. Basta o mais
trivial acontecimento, que pode ser desde a mais corriqueira
lembrança ou o pensamento mais fugidio, o deslocamento
sutil de um quadro de referências estabilizador ou o súbito
encontro com a violência traumática, para que correntes
psíquicas entrem em conflito de maneira a instalar num