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carreira seguir, direito, medicina, carreira literária, o que fazer
com o corpo e com a sexualidade etc.
O jovem, que há pouco tempo havia completado 18
anos, afirma que é a poeticidade da poesia, se nos for permitida
essa ênfase, na extração do elemento mais característico,
mais irredutível, e não a obediência a algum tipo de forma,
que, através de um processo que está longe de poder ser
justificado ou mesmo esclarecido, permite resguardar a
criação do julgamento moral. Ora, Freud, ao longo de sua
carreira, precisou resguardar-se do julgamento moral a cada
passo novo, a cada nova descoberta, justamente por causa da
temática sexual cada vez mais à luz do dia em seu trabalho.
Na famosa nota da
Traumdeutung
, em que
Édipo
e
Hamlet
aparecem juntos pela primeira vez, talvez seja isso que esteja
ao fundo.
No texto de 1928, sobre Dostoievski, justamente
considerado o moralista, é precisamente isso que está em
jogo. É o caráter artístico, mais especificamente poético, de
uma obra, mesmo quando não se trata de um “poema”, mas
do poético que existe em determinadas criações, que, de certa
forma, empresta a essa obra uma espécie de passaporte de
livre acesso, uma rota que permite passar ao lado da aduana
do julgamento moral.
Laisser-passer
. Não se trata aqui, na
Dichtung
, da beleza, da sensibilidade ou da intuição. Trata-se
do fato que o especificamente poético é aquilo que remete
ao fundamento da própria linguagem, anterior talvez a ela.
Aquilo de que a língua é já uma primeira tradução.
Nisso tudo, a diferença de estatuto entre os três
personagens é notória. Starobinski tem razão em afirmar
que figuras trágicas como Édipo e Hamlet funcionam muito
mais como operadores, como “elementos funcionais”, do
que como objetos, na economia do pensamento freudiano
(STAROBINSKI, 1967). Na mesma linha, comenta Lyotard:
Se não há nem livro nem artigo de
Freud sobre Édipo ou a fortiori sobre
Hamlet é porque a figura do rei morto
desempenha para o inconsciente de
Freud (ao menos epistemologicamente)
o papel de uma espécie de tela ou grelha
que, aplicada ao discurso analítico,
lhe permite escutar o que ele não diz,
reagrupar os fragmentos de sentido
disparatados, dispersos no material
(LYOTARD, 1994, p. 72).
Na seção IV do capítulo 5 da
Interpretação dos sonhos
,
o tema edípico imiscui-se de forma um tanto oblíqua numa
espécie de inventário de temas oníricos, como se a hipótese
formulada no contexto transferencial com Fliess ainda não
gozasse de elementos que permitissem sua justificação e sua
confirmação numa obra com pretensões de reconhecimento
como a
Traumdeutung
. Uma longa nota de rodapé associa
Édipo a Hamlet. Em edições ulteriores, a nota emerge e é
incorporada ao corpo do texto.
A primeira coisa que essa nota afirma é que as duas
criações trágicas (
Dichterschöpfungen
),
Édipo
e
Hamlet
,
fincam suas raízes no mesmo terreno, no mesmo chão
(
Boden
). Hamlet, como um típico príncipe da Renascença,
é absolutamente indiferente à vida ou à morte de seus
cortesãos. Mas, ao contrário do que uma certa corrente da
crítica assevera, ele não é incapaz de agir: por duas vezes na
peça ele dá provas de poder matar sem hesitação. O problema
não está no campo da ação, mas no objeto dessa ação, na
fantasia mobilizada.
O ponto que nos interessa mais de perto é o que
podemos chamar de uma
teoria implícita da história afetiva
da humanidade
. A teoria que será desenvolvida mais tarde
em textos como
Totem e Tabu e O homem Moisés e a religião
monoteísta
é aqui sugerida em uma de suas primeiras e
incompletas formulações. Trata-se do que Freud nomeia
como “progresso secular do recalcamento na vida afetiva
(sentimental) da humanidade” (“das säkulare Fortschreiten
der Verdrängungim Gemütsleben der Menschheit”)
Essa hipótese funciona como uma filosofia da história
implícita, que se cruza de modo bastante complexo com
sua teoria social e sua concepção de linguagem. De maneira
grosseira, podemos apresentar mais ou menos assim. A
história afetiva da humanidade coincide com uma espécie
de dessexualização imposta pela vida social. Embora esse
processo possa variar infinitamente, Freud percebe na
evolução da linguagem e dos costumes que o recalcamento
amplia seu alcance a cada nova etapa da história humana.
Evidentemente, o custo a pagar por esse processo é alto. O
interessante aqui é que a confirmação material desse processo
histórico nesse momento nos é oferecido pela comparação
das duas tragédias em pauta, o
Édipo
e o
Hamlet
.
O analista, assim como o criador literário, o poeta,
o
Dichter
, trabalha com os rastros, os resíduos desse lento
processo. Pois são esses traços que denotam que o progresso do
recalque não é sempre bem-sucedido. Ao contrário. E o poeta
se vale justamente desse material, que vai se depositando e se
sedimentando em camadas e camadas de resíduo, na estrutura