Table of Contents Table of Contents
Previous Page  118 / 155 Next Page
Information
Show Menu
Previous Page 118 / 155 Next Page
Page Background

20

sujeito um quadro sintomático das mais variadas gravidades

e durações. Freud investiga os mecanismos e a dinâmica do

quadro sintomático de uma jovem histérica protegida por um

pseudônimo, a neurose obsessiva de um paciente estrangeiro

também escondido por um pseudônimo, que funciona, aliás,

descrição definida de seu sintoma, a paranoia desencadeada

de um escritor que assina e torna pública sua loucura, com a

mesma audácia com que desvenda aspectos da vida psíquica

de grandes homens, como Leonardo, Goethe ou Dostoievski.

Por que, então, estaríamos nós, leitores, eu e você, protegidos

da investigação acerca dos mais recônditos segredos, que

julgamos tão bem escondidos num cantinho obscuro da

memória, nem sempre acessível a nós mesmos? Talvez resida

aí, nessa distância encurtada entre nós e os outros (os insanos,

os criminosos, os parricidas, os incestuosos, os pervertidos

etc.), um dos motivos maiores não apenas da resistência

à psicanálise na cultura, mas da resistência dos próprios

psicanalistas e leitores de Freud aos textos de Freud. Seus textos

exigem de nós não a fria distância do cientista que descreve

a sintomatologia objetiva, definida por traços observáveis de

comportamento do doente; não a plácida certeza de que ao

deixarmos o teatro, a sala de cinema ou fecharmos o romance

tudo aquilo perderá a inquietante estranheza da ficção e

seremos subitamente devolvidos e reintegrados à realidade

que nos circunda. A meio caminho entre a objetividade da

ciência e a estranheza da ficção, a escrita de Freud exige de

nós não apenas a paciência do conceito, mas a superação

de processos psíquicos os mais diversos. O leitor pode se

identificar com um caso clínico, pode reconhecer em si

um aspecto qualquer de uma fantasia descrita num sonho

ou num ato falho, pode rejeitar como absurdas as hipóteses

que por vezes nos tocam onde não esperávamos. A exigência

subjetiva de ler Freud pode ser enorme. Talvez deva sê-lo.

Um aspecto raramente lembrado entre os especialistas

na escrita de Freud é o cuidado com o material. Para situar

alguém no curso do tempo, os gregos costumavam se referir

não ao ano de nascimento de uma pessoa, mas ao acme

de sua vida. Pois bem, Freud estava no acme de sua vida,

por volta dos quarenta e poucos anos, quando escreveu sua

Interpretação dos sonhos. Aposta extremamente arriscada

para um médico com pretensões de ascensão à burguesia

vienense. Ali, ele relata um sem-número de sonhos próprios,

narra circunstâncias pessoais, reconhece em si mesmo

fantasias inconscientes incestuosas, parricidas, descobre uma

bissexualidade constitutiva e recalcada, não sem, a cada vez,

pedir licença ao leitor, em nome da curiosidade científica e do

desejo de saber, para tais indiscrições. Longe de serem raros,

episódios assim abundam no texto de Freud. Muitas vezes,

ele se compara ao escritor, ao romancista ou ao poeta, sempre

com a necessária modéstia de se colocar em desvantagem,

para descrever o enquadre narrativo que empresta sentido ao

sonho, à fantasia ou ao sintoma ali descrito.

Como narrar um caso clínico, descrevendo detalhes

da intimidade do analisante, sem com isso alimentar com

indícios que poderiam tornar reconhecíveis os atores daquela

história, numa Viena com ares de metrópole, contudo

setorizada em estratos sociais, onde não raro o médico é

parente ou vizinho do paciente?

Em seu ensaio sobre Dostoievski, a certa altura Freud

afirma que não pode ser mera coincidência que três das

maiores obras da literatura universal tratem do mesmo

assunto. Refere-se ali a

Édipo Rei

, a

Hamlet

e a

Os irmãos

Karamazov

. Todos os três lidam com o amor incestuoso

recalcado e o desejo inconsciente de assassinar o pai. Freud

acrescenta uma observação essencial, e que certamente aplica-

se não apenas a Sófocles, Shakespeare e Dostoievski, mas ao

próprio Freud. Diz ele: “Mas, sem atenuação e ocultamento,

a reelaboração poética não é possível.” (FREUD, S.

Arte,

literatura e os artistas

, p. 297).

O que está em jogo na narração dos casos clínicos,

no relato de sonhos, na indiscrição da revelação de um

distúrbio de memória, na descrição pormenorizada dos

componentes de uma fantasia, não é justamente a atenuação

e o ocultamento dessa elaboração poética primeira, anterior

à análise propriamente dita dos mecanismos psíquicos

subjacentes? Tudo se passa como se, antes do desocultamento

promovido pelo analista, fosse necessária, em alguma medida,

uma elaboração inicial, que ameniza e encobre, que envelopa,

que dissimula.

Numa carta de 22 de agosto de 1874, o jovem Freud

aglutinava uma concepção bem-geral, uma mera intuição

ou suspeita, mas que mais tarde terá consequências. É a

poesia de uma obra de arte que, quando ela é excepcional,

torna a obra menos susceptível à reprovação moral... (Freud,

Correspondance

1873-1939, 1991 (1960)). Qual estatuto

devemos conceder a essa declaração? Sigismund, àquela

altura, ainda grafava seu nome exatamente como seu pai lhe

havia batizado; antes de suprimir duas letras, ainda não tinha

a menor ideia do que viria a ser a psicanálise. Em termos

biográficos, estava às voltas com escolhas juvenis, do tipo que