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sujeito um quadro sintomático das mais variadas gravidades
e durações. Freud investiga os mecanismos e a dinâmica do
quadro sintomático de uma jovem histérica protegida por um
pseudônimo, a neurose obsessiva de um paciente estrangeiro
também escondido por um pseudônimo, que funciona, aliás,
descrição definida de seu sintoma, a paranoia desencadeada
de um escritor que assina e torna pública sua loucura, com a
mesma audácia com que desvenda aspectos da vida psíquica
de grandes homens, como Leonardo, Goethe ou Dostoievski.
Por que, então, estaríamos nós, leitores, eu e você, protegidos
da investigação acerca dos mais recônditos segredos, que
julgamos tão bem escondidos num cantinho obscuro da
memória, nem sempre acessível a nós mesmos? Talvez resida
aí, nessa distância encurtada entre nós e os outros (os insanos,
os criminosos, os parricidas, os incestuosos, os pervertidos
etc.), um dos motivos maiores não apenas da resistência
à psicanálise na cultura, mas da resistência dos próprios
psicanalistas e leitores de Freud aos textos de Freud. Seus textos
exigem de nós não a fria distância do cientista que descreve
a sintomatologia objetiva, definida por traços observáveis de
comportamento do doente; não a plácida certeza de que ao
deixarmos o teatro, a sala de cinema ou fecharmos o romance
tudo aquilo perderá a inquietante estranheza da ficção e
seremos subitamente devolvidos e reintegrados à realidade
que nos circunda. A meio caminho entre a objetividade da
ciência e a estranheza da ficção, a escrita de Freud exige de
nós não apenas a paciência do conceito, mas a superação
de processos psíquicos os mais diversos. O leitor pode se
identificar com um caso clínico, pode reconhecer em si
um aspecto qualquer de uma fantasia descrita num sonho
ou num ato falho, pode rejeitar como absurdas as hipóteses
que por vezes nos tocam onde não esperávamos. A exigência
subjetiva de ler Freud pode ser enorme. Talvez deva sê-lo.
Um aspecto raramente lembrado entre os especialistas
na escrita de Freud é o cuidado com o material. Para situar
alguém no curso do tempo, os gregos costumavam se referir
não ao ano de nascimento de uma pessoa, mas ao acme
de sua vida. Pois bem, Freud estava no acme de sua vida,
por volta dos quarenta e poucos anos, quando escreveu sua
Interpretação dos sonhos. Aposta extremamente arriscada
para um médico com pretensões de ascensão à burguesia
vienense. Ali, ele relata um sem-número de sonhos próprios,
narra circunstâncias pessoais, reconhece em si mesmo
fantasias inconscientes incestuosas, parricidas, descobre uma
bissexualidade constitutiva e recalcada, não sem, a cada vez,
pedir licença ao leitor, em nome da curiosidade científica e do
desejo de saber, para tais indiscrições. Longe de serem raros,
episódios assim abundam no texto de Freud. Muitas vezes,
ele se compara ao escritor, ao romancista ou ao poeta, sempre
com a necessária modéstia de se colocar em desvantagem,
para descrever o enquadre narrativo que empresta sentido ao
sonho, à fantasia ou ao sintoma ali descrito.
Como narrar um caso clínico, descrevendo detalhes
da intimidade do analisante, sem com isso alimentar com
indícios que poderiam tornar reconhecíveis os atores daquela
história, numa Viena com ares de metrópole, contudo
setorizada em estratos sociais, onde não raro o médico é
parente ou vizinho do paciente?
Em seu ensaio sobre Dostoievski, a certa altura Freud
afirma que não pode ser mera coincidência que três das
maiores obras da literatura universal tratem do mesmo
assunto. Refere-se ali a
Édipo Rei
, a
Hamlet
e a
Os irmãos
Karamazov
. Todos os três lidam com o amor incestuoso
recalcado e o desejo inconsciente de assassinar o pai. Freud
acrescenta uma observação essencial, e que certamente aplica-
se não apenas a Sófocles, Shakespeare e Dostoievski, mas ao
próprio Freud. Diz ele: “Mas, sem atenuação e ocultamento,
a reelaboração poética não é possível.” (FREUD, S.
Arte,
literatura e os artistas
, p. 297).
O que está em jogo na narração dos casos clínicos,
no relato de sonhos, na indiscrição da revelação de um
distúrbio de memória, na descrição pormenorizada dos
componentes de uma fantasia, não é justamente a atenuação
e o ocultamento dessa elaboração poética primeira, anterior
à análise propriamente dita dos mecanismos psíquicos
subjacentes? Tudo se passa como se, antes do desocultamento
promovido pelo analista, fosse necessária, em alguma medida,
uma elaboração inicial, que ameniza e encobre, que envelopa,
que dissimula.
Numa carta de 22 de agosto de 1874, o jovem Freud
aglutinava uma concepção bem-geral, uma mera intuição
ou suspeita, mas que mais tarde terá consequências. É a
poesia de uma obra de arte que, quando ela é excepcional,
torna a obra menos susceptível à reprovação moral... (Freud,
Correspondance
1873-1939, 1991 (1960)). Qual estatuto
devemos conceder a essa declaração? Sigismund, àquela
altura, ainda grafava seu nome exatamente como seu pai lhe
havia batizado; antes de suprimir duas letras, ainda não tinha
a menor ideia do que viria a ser a psicanálise. Em termos
biográficos, estava às voltas com escolhas juvenis, do tipo que