
Ary Farias (EBP-AMP)
Arte, política e sinthoma. É possível traçar uma linha comum que atravesse essas três instâncias conceituais em psicanálise de maneira a estruturar uma conjugação razoável?
De todo modo, são peças teóricas fundamentais na prática da clínica lacaniana e incitam sempre uma clínica arguta capaz de ler e interpretar a subjetividade do sujeito contemporâneo, que se arranja sempre como resposta às idiossincrasias estruturais do seu tempo, com seus fatos históricos, políticos e culturais – o momento histórico, esse caldeirão sempre a verter o fluído imagético de seus dias, seus impasses, seus símbolos e os constantes desarranjos advindos da eclosão do real no tecido da existência.
Arte
Lacan, depois de uma primeira visada com a literatura de Marguerite Duras, encontrou na literatura de James Joyce novamente aspectos que corroboravam e faziam avançar aquilo que ele ensinava. Leu em sua literatura uma expressão de parceria sintomática estruturante, o quarto elemento que enodaria a trindade RSI. Para tanto, Joyce produziu uma escrita desancorada da sua função de mensagem, um nonsense com prevalência absoluta da materialidade fonética sobre a estrutura formal do texto. Uma escrita que ocorre às margens das regras ortográfica, semântica e mesmo fronteiras idiomáticas. Joyce escreve a Babel das línguas com sua literatura alforriada de sentido e, podemos inferir, de algum modo, “escreve” a não existência do grande Outro[1].
De um modo geral, podemos tomar a arte como manufatura de gozo sofisticada, uma vez que o produto advindo daí resulta de uma leitura e de uma interpretação singular sobre as questões que fazem voragem ao corpo vivo.
O artista é um intérprete de seu tempo, tem a insólita função de ser arauto dos ocasos, é a consciência aguda de sua época. Por outro lado, em seu aspecto luminar, o artista é aquele que domina o engenho da transposição do abjeto ao sublime. Em seu fazer, corrobora Lacan ao assinalar a incontestável solidão do Um no que se refere à experiência de gozo no corpo. Seu artefato escreve essa ficção.
Política
A perspectiva de abordar a psicanálise pelo viés da política necessariamente convoca, de modo preambular, a inferência do conceito de gregarismo já bem desenvolvida pela Sociologia. Em psicanálise, no homem, para além dos compromissos biológicos, o viver junto responde a uma necessidade de identificação e pertencimento simbólico. O rebanho humano faz laço de compromisso a partir do húmus da linguagem. De algum modo, o rebanho é o idioma. De outra forma, a língua funda as nações de gozo, essa geopolítica com a qual a psicanálise, desde Lacan, se ocupa e busca estabelecer. A demografia lacaniana estuda a dinâmica da população de gozo.
Portanto, podemos tomar a política como a condição mesmo do inconsciente, uma vez que é a partir do Outro que um corpo pode autoproclamar existência e unidade. Ter um corpo decorre, então, dos efeitos dessa imersão na língua do Outro, cuja cosmologia reflete sua função estrutural. Há inclusive duas capturas literais, em momentos diferentes, no ensino de Lacan, onde é possível localizar o desenvolvimento das formulações sobre o inconsciente: “A linguagem é a condição do inconsciente, é isto o que eu digo”[2] e, em outro momento, “[…] não digo A política é o inconsciente, mas simplesmente O inconsciente é a política.”[3] São afirmações que dilatam a compreensão do inconsciente, uma vez que o acento desliza o seu núcleo da linguagem para a política.
Essa perspectiva rompe com o paradigma de inconsciente como formação hermética e ressoa suas origens no laço social, ou seja, nas estruturas discursivas que acolhem o sujeito e organizam os lugares de enunciação, os modos de uso do corpo e o que se estabelecerá como iteração de gozo. Portanto, se o inconsciente é a política, por extensão natural, o próprio sintoma também o é, uma vez que é legitimamente uma formação do inconsciente.
Alçar a expressão sintomática ao campo do político retroage e faz avançar a própria compreensão da prática analítica, um modelo de laço social que se dedica a escrever, caso a caso, a estratégia e a ficção sustentadas pelo sujeito que terão por função fazer tela ao real – buscar no sintoma a sua verdade enigmática, grafada no corpo, não raro, em forma de rébus. Imagens dissonantes que pululam em franca desordem na subjetividade do sujeito, no entanto, o analista lacaniano, informado do real, sabe que ali viceja a sua ordem mais recôndita: o falasser existe enquanto o real, involuntário e indiferente, lhe fizer apenas borda, e com isso lhe permitir que se abrigue sob o manto do simbólico e do imaginário. O falasser é, antes de tudo, irreversível. Arena viva de gozo. Essa é a angústia que pede política para poder suportá-la. Pede o Outro.
Sinthoma
Ao abordar o sinthoma, partimos da premissa de que o ensino de Lacan se desenvolveu teoricamente no sentido da travessia do fantasma à identificação ao sinthoma. Aqui se situa a pedra angular do que se articulou posteriormente.
Nessa perspectiva, a clínica opera com novos irrevogáveis, poderíamos dizer. Em seu núcleo temos o falasser, o gozo, o corpo e o real. Nessa ordenação, o sinthoma será a extração ao final da experiência analítica, aquilo que se projeta como marca d’água na carne atravessada pelo significante. No sentido do que avança em relação ao sintoma sem th, o que se escreve agora dispensa a função de mensagem cifrada ao Outro, para se pautar como letra, como ravinação no corpo e, por efeito, escreve algo da solução singular do Um frente ao real.
De algum modo, a solução em psicanálise revela o ponto de assunção ao real, ou seja, descortina ao falasser o campo do impossível, aquilo que não cessa de não se escrever, sem, contudo, lhe imputar uma condição de fé. A psicanálise é uma prática profana. Tem por norte devolver o sujeito aos efeitos radicais das suas escolhas, trazendo à tona o que se inscreve como significante-mestre e os efeitos da retificação alcançada.
Em suma, o sinthoma é uma resposta ao real. Admitir essa singularidade que se replica caso a caso é o que orienta o analista lacaniano a receber pessoas em análise e, já esclarecido de que, ao fazê-lo, se autoriza a lidar com formas imprevistas de existir.
[1] LACAN, J. Joyce, o Sintoma. (1976) In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 560-566.
[2] LACAN, J. O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. (1969-1970) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: Ari Roitman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. p. 39.
[3] LACAN, J. O seminário, livro 14: A lógica do fantasma. (1966-1967) Tradução: Teresinha N. Meirelles do Prado. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 2024. p. 267.