skip to Main Content

Cristiano Alves Pimenta EBP/AMP

O uso da droga constitui, para o sujeito toxicômano, uma autêntica experiência de gozo. Na origem, na primeira vez, como é relatado em alguns casos, essa experiência produziu, de algum modo, uma perturbação da ordem de um verdadeiro e inesquecível acontecimento de corpo. Esse acontecimento único tem para o sujeito o valor de traumatismo. O uso da droga pode ser, nesses casos, a repetição dessa primeira vez com a mesma intensidade vivida. Miller[1] afirma que “o que Lacan chama de sinthoma está no nível da adição – o gozo repetitivo da adição só tem relação com o significante Um sozinho, com o S1”. O gozo repetitivo da adição fornece o modelo do gozo do sinthome. Trata-se aqui das repetições que nada acrescentam de novo, e também não produzem nenhum saber a ser aprendido. O sujeito apenas revive o mesmo deslumbramento desse primeiro e inesquecível encontro traumático. Na adição estamos no regime do gozo que itera.

No tratamento de sujeitos toxicômanos encontramos os casos em que o uso da droga produz na vida do sujeito um gozo mortífero que pode impedi-lo de toda e qualquer forma de laço social. A droga, nesses casos, tornou-se o único parceiro. A questão aqui é saber se o psicanalista – seja numa instituição, seja no consultório – teria condições de se imiscuir nessa parceria fomentando nela a parceria com a palavra. Em outros termos, é possível fazer surgir os efeitos de verdade no tratamento do toxicômano? É possível que o sujeito consinta com uma certa perda de gozo? Não há dúvida de que fomentar a parceria com a palavra é um desafio que se estende para além das toxicomanias. O gozo com a droga, eventualmente silencioso, poderia ceder ao gozo com a palavra, ainda que fosse lá onde o sujeito fala sozinho?

Caberá ao psicanalista, seja no consultório ou na instituição, saber avaliar. Aqui vale mencionar um caso clínico apresentado por Pablo Sauce no Núcleo de Toxicomania do IPLO. Neste caso, Pablo julgou que o sujeito internado em uma instituição de tratamento não poderia ser privado do uso de certa substância na medida em que essa lhe era necessária para manter um vínculo com a vida. Esse é o ponto em que as toxicomanias nos advertem para o fato de que retirar o gozo que sustenta o sujeito pode ser, pelo menos em alguns casos, catastrófico. E que o gozo, ainda que tenha sempre uma face ligada à pulsão de morte,  também conserva a outra face ligada à pulsão de vida.

O que se conclui disso é que é fundamental que o psicanalista se interrogue a função que do gozo da droga tem para cada sujeito. É possível substituir esse gozo, desloca-lo, diminuí-lo, de modo a permitir que ele seja menos danoso e mortífero ao sujeito? É possível transformá-lo em um sintoma no sentido freudiano, quer dizer, é possível enigmatizar esse gozo? Não faltam casos em que a enigmatização se mostra impossível. É nesse sentido que Miller nos diz que o tratamento do toxicômano obriga os analistas a uma lição de modéstia.

Por outro lado, também não faltam, na clínica, pacientes que possuem parcerias amorosas relativamente bem sucedidas e mantém os laços sociais, ainda que façam uso constante de alguma substância. Qual a função a droga tem nestes casos? Certamente, esses não são casos em que podemos encontrar o toxicômano no sentido indicado por Lacan, quando formula que o toxicômano é aquele sujeito que efetuou “uma ruptura no casamento com o faz pipi”. Que Lacan tenha usado nessa breve fórmula a palavra “casamento” não é sem ressonâncias, na medida em que são incontáveis os casos de sujeitos que veem seus casamentos irem por água abaixo na medida em que as doses aumentam. No filme sueco Drunk, mais uma rodada (2020) – já discutido no Núcleo de Toxicomania (Tya) do IPLO – vemos um grupo de amigos homens testar a teoria de que serão mais felizes e bem sucedidos se mantiverem diariamente um certo percentual de álcool no corpo. Depois de perder o controle e se entregar ao excesso, vemos Martin, o personagem principal, lutar desesperadamente para recuperar seu casamento.

A complexidade dessas relações com a droga nos levam a perguntar também pelo modo como a droga se coloca em cada estrutura. A fórmula de Lacan (a droga é o que permite romper o casamento com o faz pipi) se refere aos sujeitos que possuem um faz pipi, o falo, pois, é preciso tê-lo para que seja possível romper com ele. Ou seja, trata-se de sujeitos que possuem em sua estrutura a função do nome do Pai, mas que rompem com o gozo fálico. De modo mais estrutural, essa ruptura com o gozo fálico deve ser entendida como uma ruptura com o gozo sustentado pela fantasia. Portanto, o gozo do toxicômano é aquele que, como sublinha Éric Laurent em “Três observações sobre a toxicomania”, torna possível “gozar sem a fantasia”.

Por outro lado, a fórmula lacaniana da toxicomania não se aplica aos sujeitos psicóticos, já que estes, em decorrência da foraclusão paterna (P0), não possuem nenhum falo (φ0). Cito um caso que Laurent utiliza para falar do uso da droga na psicose:

“…me ocorreu encontrar toxicômanos psicóticos. Pessoas que não se apresenta sob o modo “eu sou toxicômano”. Eles são outra coisa, mesmo se entre outros, tomam um certo número de tóxicos, seguramente, eles não são toxicômanos. Encontrei um no hospital, ele estava ali por um assunto de família. Ele faz notar que a questão em sua família era a herança. Como era uma família camponesa, ele repetia todo o tempo “a questão são as terras” (les question c’est les terres”). Este homem era viciado em éter (l’éther). Aí estava claro que o gozo da substância, o éter que ele inalava, vinha no lugar, era o retorno no real deste gozo extraído do Nomem-do-Pai, que era para ele a herança das terras”.

No entanto, não poderíamos perguntar se a desmedida do gozo que a droga produz não teria, de modo mais geral, afinidades com o gozo desmedido que encontramos nas psicoses? Pois, se “o que Lacan chama de sinthoma está no nível da adição”, então o gozo do toxicômano tem afinidade com “o gozo enquanto tal”. Esperamos que os trabalhos escritos para esse eixo nos permitam avançar nessa discussão.


Referências Bibliográficas:
LACAN, J. O seminário, livro 17, o avesso de uma análise. Zahar. Rio de Janeiro.
LACAN, J. O seminário, livro 23, o sinthoma. Zahar. Rio de Janeiro.
LAURENT, E. Três observações sobre a toxicomania; in Pharmakondigital.com
MILLER, J.-A. A droga da palavra, in pharmakongital.com
MILLER, J.-A. O ser e o Um; Inédito; 2011.


[1] J.-A. MILLER; O ser e o Um; Inédito, 2011.

Back To Top