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Jaqueline Coelho e Tânia Regina Anchite Martins

Parceria sinthomática

Entre 1910 e 1918, Freud elaborou alguns textos que ele mesmo reuniu sob uma série intitulada “Contribuições para a psicologia da vida amorosa”[1]. São eles: “Sobre um tipo particular da escolha de objeto nos homens” (1910), “Sobre a mais geral degradação da vida amorosa” (1912), e “O tabu da virgindade” (1918). De maneira geral, poderíamos dizer que a sexualidade masculina é que ganha destaque nessa investigação. Ainda que haja dedicado nomeadamente dois textos ao tema da vida sexual da mulher, Freud não logrou desembaraçar-se das supostas soluções pela via fálica e vislumbrou suas limitações ao considerar a sexualidade feminina como um continente negro para a psicanálise.

No Seminário 20, Lacan nos apresentou o quadro das fórmulas quânticas da sexuação, com dois lados, afirmando que: “quem quer que seja ser falante se inscreve de um lado ou de outro”[2]. Mas, ele diz: lado homem e lado mulher. Então, define o lado homem como o que se localiza pela função fálica e o lado mulher como o ilimitado. Aqui não há universalidade. “Os homens e as mulheres […] são uma questão de escolha, e isso não segue, necessariamente, o sexo biológico[3]”, o que faz com que, em última instância, seja no um a um que a posição de gozo deva se verificar.

Estamos falando do falasser, que tem um corpo sexuado. “O gozo do corpo de que se trata é um gozo habitado por um sujeito do significante, quer dizer, não um gozo bruto, não um gozo anterior ao significante; no falasser, o gozo do corpo é ligado ao significante como sua consequência.”[4] Na medida em que se tem um corpo, há o gozo de lalíngua.

Tendo isso em vista, Miller introduziu a noção de parceiro-sintoma, que ele definiu como: em primeiro lugar, “um modo de gozar […] do inconsciente, do saber inconsciente, da articulação significante e do investimento libidinal do significante e do significado;” e, em segundo lugar, “um modo de gozar do corpo do Outro. Mas […], o corpo do Outro é tanto o corpo próprio como o corpo de outrem”[5].

No nível do sexuado, falamos de gozo do corpo, do corpo que se goza. Portanto, a parceria sintomática feita pelos seres sexuados ocorre no nível do gozo próprio. Nessa via, Lacan lançou seu tão famoso aforismo: “não há relação sexual”.

Sob que condições o Outro se torna um meio de gozo, um instrumento de gozo para cada um? Como se constitui a parceria sintomática em que o Outro se torna o sintoma do falasser, seu meio de gozo? Como o falasser pode se servir do Outro como corpo para gozar? Como o gozo autista que se produz no corpo de Um pode se servir do corpo Outro como alteridade, do fora do corpo, como instrumento? O que as análises nos ensinam?

Do Outro lado, o gozo do corpo próprio, também é Outro para o falasser, no sentido da estranheza e da falta de localização.

Parceiro-fantasma

O ser falante, ao se colocar do lado homem, tem como parceiro o objeto a. “Só lhe é dado atingir seu parceiro sexual, que é Outro, por intermédio disto, de ele ser a causa de seu desejo”[6], o fantasma.

A estrutura do Todo x, que encontramos no lado homem do quadro de Lacan, determina, necessariamente, o parceiro-sintoma de quem se coloca neste lado como pequeno a. “O pequeno a é uma unidade de gozo, é uma unidade discreta de gozo, separável, contabilizável.”[7]  Pode se localizar, enumerar, pode se revelar em uma análise, através das fantasias, como uma forma de fetiche que se impõe ao parceiro.

Na parceria fantasmática, o modo de gozar do falasser exige que seu parceiro responda a um modelo, às vezes um pequeno detalhe é o determinante. Falamos de um gozo limitado, localizado, contabilizável, o que permite ao falasser que se posiciona deste lado um certo saber sobre o que condiciona seu gozo.

Parceiro-Devastação

“Se uma mulher é um sinthoma para todo homem, fica absolutamente claro que há necessidade de encontrar um outro nome para o que um homem é para uma mulher […]. Pode-se dizer que o homem é para uma mulher tudo o que vocês quiserem, a saber, uma aflição pior que um sinthoma. […] Trata-se mesmo de uma devastação”[8].

A devastação é a “outra face do amor”[9], já que ambos comungam o mesmo princípio, a saber “o grande A barrado, o não-todo, no sentido do sem-limite”[10] . Em análise, uma mulher precisa se haver com as questões do amor, ou seja, com sua erotomania. Na relação com o parceiro como Outro barrado, ela necessita que o homem lhe fale. Assim, a demanda de amor desempenha função princeps na sexualidade feminina e, “comporta, em si mesma, um caráter absoluto e uma visada ao infinito, que é manifestada no fato de que o Todo não está formado, o Todo não faz Um, e isso abre para o infinito, além de tudo o que se pode trocar de material, tudo o que se pode oferecer como prova”.[11]

“À falta de uma relação sexual que existisse, algumas mulheres estabelecem uma relação de amor real onde se disputam a devastação e o êxtase”[12]. Esses dois termos indicam as duas faces do gozo feminino para uma mulher. É nesse sentido que Lacan nos ensina que não há limites no que uma mulher poderá oferecer de si a um homem, podendo sacrificar sua reputação, seus filhos, seus bens materiais etc. Aqui, predomina, portanto, a forma erotomaníaca de amar, caracterizada pela exigência a um amor ilimitado e insaciável.


[1] FREUD. S. (2023) Contribuições para a psicologia da vida amorosa (1910-1918). Em: Amor, sexualidade, feminilidade. Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte:  Autêntica.

[2] LACAN, J. (1982) O Seminário, livro 20, Rio de Janeiro: Zahar p.107.

[3] MILLER, J.-A. (2015) O osso de uma análise + O inconsciente e o corpo falante. Rio de Janeiro: Zahar, p. 93.

[4] MILLER, J.-A. (2015) O osso de uma análise + O inconsciente e o corpo falante. Rio de Janeiro: Zahar, p. 86.

[5] MILLER, J.-A. (2015) O osso de uma análise + O inconsciente e o corpo falante. Rio de Janeiro: Zahar, pp. 89-90

[6]  LACAN, J. (1982) O Seminário, livro 20, Rio de Janeiro: Zahar p.108

[7]  MILLER, J.-A. (2015) O osso de uma análise + O inconsciente e o corpo falante. Rio de Janeiro: Zahar, p.93.

[8] LACAN, J. (2007). O Seminário, livro 23. Joyce, o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, p. 98.

[9] MILLER, J.-A. Uma partilha sexual. Opção Lacaniana online nova série, ano 7, n. 20, 2016. Disponível em:  < http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_20/Uma_partilha_sexual.pdf Acesso em 08 de abril de 2025.

[10] Ibidem.

[11] MILLER, J.-A. (2015) O osso de uma análise + O inconsciente e o corpo falante. Rio de Janeiro: Zahar, (p. 95-6)

[12]  MILLER, D. As duas margens da feminilidade. Boletim Infamiliar, julho de 2020. Disponível em: <http://www.encontrobrasileiro2020.com.br/as-duas-margens-da-feminilidade-2/>. Acesso em: 08 de abril de 2025.

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