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Bartyra Ribeiro de Castro (EBP/AMP) e Rosângela Ribeiro (EBP/AMP)

Testemunhamos uma época marcada pela inconsistência do Outro, pelo Outro que não existe e, mais que nunca, uma época da evaporação do pai e de fragilidade do laço social, por uma falha simbólica imprescindível para sustentar a realidade subjetiva na qual há, cada vez mais, uma saturação do real.

Miller, em El partenaire-síntoma, apresenta que, no que tange ao significante, é impossível que se compreendam um sexo e outro. Assim, “que não haja relação sexual não impede que haja uma relação de gozo com o parceiro-sintoma e que se formem casais em que um para o outro é meio de gozo” (2008, p. 411). Assim, o falasser, salvo exceção, se serve do Outro para gozar o gozo no corpo do Um e para gozar passa-se por meio do corpo do Outro.

O aforisma “não há relação sexual”, na psicose, implica que o fantasma pertença ao Outro e se apresente sob a forma de um delírio invasor. As invenções encontradas em parcerias, na psicose, podem vir a regular o gozo mortífero fazendo a suplência ao laço social. O psicótico se apresenta enquanto objeto de gozo do Outro. É o que se vê, por exemplo, na parceria de Joyce com Nora, de forma que a função desta escrita é responsável pelo ego do escritor, uma invenção sinthomática que corrige uma falha no nó estruturante. Essa invenção garante um envelopamento do corpo do escritor e uma localização de seu gozo.

Embora tenha vivido outras experiências, Nora era-lhe algo singular. Pode-se pensar em uma relação sexual? Sim, “coisa singular, que é uma relação sexual, ainda que eu diga que não há relação sexual. Mas é uma relação sexual bem esquisita” (LACAN, 2007, p. 81). Assim, compreendemos a conhecida metáfora lacaniana de que Nora veste Joyce como uma luva.

Em Cartas a Nora veem-se demandas de Joyce a torturas, como em Ulysses no masoquismo de Bloom. Lacan enfatiza: “Para Joyce, só há uma mulher […] e ele só a enluva com a maior das repugnâncias” (Ibidem., p. 81). Paradoxalmente, as depreciações que Joyce faz a Nora, tornam-lhe a mulher escolhida. É aparentemente controverso, pois pode-se dizer que ela é o parceiro-sintoma de Joyce, uma vez que a função do amor para ele tem um único nome, Nora, localizado em um lugar êxtimo. Lacan ainda comenta que “não é apenas preciso que ela lhe caia bem como uma luva, mas que ela o cerre como uma luva. Ela não serve absolutamente para nada” (Ibidem, p. 82).

Vê-se, em Joyce com Nora, um encontro contingente, que coloca em jogo tudo o que marca cada falasser, o traço de seu exílio da relação sexual, a solidão, o real da relação sexual que não existe.

Quanto ao autismo, no entanto, as características apontadas como próprias a esta estrutura, dizem da não-parceria, ou somente do que Miller considera como parceria – entre o falasser e seu gozo. Faz a exceção ao não se servir do Outro para gozar o gozo no corpo do Um. É uma estrutura fundada sob o gozo do Um, formada por S1s congelados que iteram numa metamorfose multiplicativa (2021, p.13), marcada pelo autoerotismo, pela defesa radical frente ao desejo do Outro, seus afetos e invasões, com uma forma de estar no mundo em que predomina a retenção dos objetos da pulsão, que faz obstáculo a uma subtração de gozo – que seria caracterizada pela alienação, que comparece minimamente, mas não pela separação – e, portanto, pela não queda do objeto a.

Mesmo o sintoma precisa ser questionado quanto ao seu estatuto. No autismo, o gozo do falasser, que faz retorno sobre a borda, diz de um sintoma que “[…] a borda que ele define separa o sujeito do Outro, estabelecendo condições para afastá-lo.” (2011, p.21) É uma forma sintomática singular marcada pela rejeição à enunciação do Outro e por uma impossibilidade para com a sua. Como não há, claramente, investimento no vivo, o gozo localizado na borda permite que invente formas de acessar o Outro via objetos autísticos, duplos e interesses específicos, não, necessariamente, tomando a palavra.

Segundo Maleval, “o autista está mais perto de uma reação sexual que de uma relação de engajamento”, “não é da presença do Outro que o autista se protege, mas do vivo, disso que lhe faz sentir os afetos, uma vez que é preciso não entrar nos circuitos do engajamento, em que se confrontaria com o desejo do Outro.” (2021, p. 81) O amor e a delicadeza manifestados nas relações são sentidas como “insuportáveis tentativas de imobiliza-los.” (Idem. P.81).


Referências bibliográficas

JOYCE, J. Cartas a Nora. Relógio D’Água: Lisboa, 2012.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

______. O seminário, livro 20: mais, ainda… Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

______. O seminário, livro 19: ou… pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.

MILLER, J-A. et al. La psicosis ordinariala convención de Antibes. Buenos Aires: Paidós, 2009.

MILLER, Jacques-Alain. As duas formas do parceiro-sintoma. In: ______. O osso de uma análise: mais o inconsciente e o corpo falante. Rio de Janeiro: Zahar, 2015. p. 77-102.

______. Efeito do retorno à psicose ordinária. Opção Lacaniana online nova série. São Paulo, ano 1, n. 3, nov. 2010. ISSN. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br Acesso em: dezembro de 2016.

______. Uma conversa sobre o amor. Opção Lacaniana online nova série, Buenos Aires, ano 1, n. 2, 2010. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_2/Uma_conversa_sobre_o_amor.pdf. Acesso em: 5 set. 2020.

______. Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana online nova série. Paris, ano 3, n. 7, p. 1-49, 2012. Disponível em: http://opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_7/Os_seis_paradigmas_do_gozo.pdf. Acesso em: agosto de 2020.

———. Prefácio. In MALEVAL Jean-Claude. La Difference autistique, Arguments analytiques, Paris, 2021.

Berenger E., e Roizner M., Acheminements vers la parole dans l’autisme, La Cause Freudienne, 78, Navarin, Paris, 2011.

MALEVAL Jean-Claude. La Difference autistique, Arguments analytiques, Paris, 2021.

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