skip to Main Content
Claudia Murta
Coordenadora Geral das V Jornadas da SLO

A proposta do tema, CORPO, M-E-M-Ó-R-I-A, a ser trabalhado nas V Jornadas da Escola Brasileira de Psicanálise Leste-Oeste, inclui em sua apresentação os conceitos CORPO, TRAÇO, MEMÓRIA. Do que estamos falando quando pensamos o corpo, o traço, a memória? Como esses três conceitos se relacionam entre si? O que é um traço para a memória? O que é um traço para o corpo? Como a memória influencia o corpo?

Dos três conceitos a serem operacionalizados, o traço é o que faz laço entre corpo e memória. Como esse enlaçamento se dá? Ainda em escritos iniciais, Freud estabelece as premissas do aparelho psíquico. Em uma extremidade de seu esquema está a percepção e na outra extremidade está a consciência; entre as duas tem uma série de traços de memória sucessivos, tal como apresenta o desenho freudiano e que constituem os sistemas, inconsciente e pré-consciente, considerados sistemas de memória. Segundo Freud, o aparelho psíquico se relaciona com o mundo externo via percepção. Inicialmente existe a experiência e o traço da percepção. Desse modo, a percepção é a porta de contato entre a mente e o mundo. O que se percebe? Estímulos externos que afetam o corpo. Uma vez que o corpo foi afetado pelos estímulos externos, como interage com o traço e a memória? O que foi um estímulo externo, via percepção, internamente no aparelho psíquico, se transforma em traço de memória. Entre percepção e consciência, encontram-se os traços de memória. Em outras palavras, a percepção é a chave de leitura do mundo.  O circuito entre percepção, memória e consciência é realimentado, seja por percepções, seja por transcrições de traços de memória. Aos primeiros traços se associam novos traços que não têm relação imediata com os primeiros traços inscritos no aparelho psíquico pela percepção. Os primeiros traços se situam na linha do consciente, já os traços seguintes são inconscientes. O traço e as associações de traços formam a realidade interna do inconsciente que se constitui por meio de associações de traços formando novos traços inconscientes. Seguindo a construção freudiana, corpo e memória se enlaçam por intermédio dos traços de memória que, via percepção dos estímulos originários da realidade externa, marcam o corpo e formam redes com novos traços inconscientes.

Sendo o sistema inconsciente freudiano formado pelos traços de memória inscritos no corpo, a pergunta decorrente é: como se dá o entrelaçamento de corpo, traço e memória para Lacan? É sempre bom lembrar que Lacan sempre insiste que é freudiano, mesmo que Freud não seja lacaniano. Assim, apoiando-se na linguística estrutural, Lacan propõe que o traço de percepção, base da formação do inconsciente, seja um significante, pois é o traço que oferece ao significante seu poder. Em sua proposta, o inconsciente é estruturado como uma linguagem e, em termos linguísticos, um significante é uma sequência de letras em relação a um significado. O significante se origina da própria experiência percebida, inscrita, transformada e deformada por conexões e associações que criam uma realidade interna inconsciente em paralelo à consciência. Entender como as percepções se inscrevem no aparelho psíquico em forma de traços de memória é mais acessível, contudo, assimilar a ideia de que o traço de memória seja uma letra inscrita no corpo, precisa de um pouco mais de reflexão. Como o significante se inscreve no corpo? Como as palavras penetram os corpos? O corpo é afetado por traços significantes; trata-se de um corpo falado pelas contingências de um dizer que produz o que Lacan nomeia como acontecimentos de corpo. O primeiro encontro do corpo com o real da língua produz um acontecimento traumático. Um acontecimento de um discurso sem palavras que deixa efeitos permanentes no corpo nomeados por Lacan como efeitos de gozo. Por isso, o corpo fala por meio do dizer silencioso da pulsão. Na análise trata-se de saber ler os acontecimentos que traçam os sintomas e as letras de gozo com as quais o ser falante se identifica.

Como se pode acontecer na prática analítica, a leitura dessas letras de gozo? A fantasia que, desde Freud, é a realidade do inconsciente, resultado das associações de traços de percepção e memória é, também em Lacan, o único caminho a seguir. Se, como vimos, a percepção é a porta de entrada para os traços, a fantasia é a porta de acesso ao inconsciente. Como a fantasia pode abrir as portas do inconsciente?  A associação entre os significantes participa da organização da fantasia inconsciente que se ativa por uma rede de associações entre traços de memória sem conexão direta com a experiência inicial do mundo externo. A cena inconsciente constitui-se em descontinuidade com a realidade. O trabalho analítico pode restabelecer essa continuidade desmascarando a cena fantasmática, capturando os significantes e produzindo um novo traço inconsciente; o encontro de um significante novo que se articula com o silêncio da pulsão, identificando corpo e sintoma.

Para acompanhar os conceitos em foco, fez-se necessário iniciar o debate com o entrelaçamento entre traço, corpo e memória. Desse entrelaçamento inicial, apareceram novos conceitos como, percepção, consciente e inconsciente. Em seguida, novos conceitos foram enredados:  significante, letra e fantasia. Os traços iniciais se complexificam em redes, tais como os conceitos que também se enredam caminhando em várias possíveis articulações.

Nesse périplo conceitual, o sintoma se inclui na problemática do corpo na experiência analítica articulando significante, corpo e pulsão.  A prática analítica procura verificar a palavra do sintoma que não é dita, mas se apresenta no corpo como gozo ou satisfação pulsional. Assim, o sintoma segue a pulsão em seu caminho silencioso quando se mostra como a palavra que não foi dita. Com a formação de sintomas, o corpo inscreve a palavra que não foi dita quando a pulsão não se uniu a uma representação. Desse modo, no lugar de uma ideia recalcada, o sintoma se manifesta no corpo como uma palavra silenciosa e sem sentido, uma satisfação pulsional, um gozo, um sofrimento que revela uma satisfação. Manifestando-se como palavra silenciosa, inclui-se na problemática do gozo distinto do prazer. Desde a obra de Freud, a pulsão sempre foi surda e muda, mas seu silêncio não impede o gozo silencioso. A pulsão é uma demanda que se manifesta como uma exigência que não cessa, uma espécie de demanda pura de satisfação. O sintoma oferece à pulsão uma satisfação que se apresenta como um desprazer. Um paradoxo de uma satisfação que se apresenta como desprazer, quando o sintoma se articula à pulsão como desvio do curso pulsional que, ao mesmo tempo, satisfaz sua exigência de alguma forma. Lacan, nesse contexto, propõe o termo gozo incorporado pelo significante que, como traço, se inscreve no corpo, enlaçando-se à pulsão. Desse modo, o corpo se sustenta no real do gozo, enquanto manifestação de um corpo pulsional referido ao sintoma como algo que acontece no corpo, tal como enuncia Lacan.

Como a expressão acontecimento de corpo se inclui nesse processo? O sintoma como acontecimento de corpo, proposto por Lacan e destacado por Miller, coloca em evidência o corpo na experiência analítica. Nessa concepção de sintoma, a satisfação pulsional se produz na dimensão do corpo e não no plano das representações. O sintoma impede o movimento pulsional ao gastar-se no próprio corpo do indivíduo e funciona como contenção da pulsão, evitando o movimento, ao lançar a pulsão sobre o próprio corpo. Assim, no caso da formação de sintomas, o corpo faz a contenção da pulsão e é a defesa contra a própria pulsão, um processo substitutivo da satisfação da pulsão. Em vez de proceder a uma ação que transforme o mundo, produz-se uma modificação sintomática no corpo. Ao invés de uma satisfação direta da pulsão, o curso normal da satisfação é degradado pelo sintoma que tem o valor metafórico de satisfação da pulsão e, de certo modo, encarna a exigência de satisfação da pulsão. Tendo em vista que o sintoma se manifesta no corpo, conclui-se, em termos lacanianos, que tanto o corpo, quanto a carne, podem ser tomados como significantes.

Quando, em seu último ensino, Lacan propõe que as palavras fazem corpo, tratam-se das palavras que se enodam ao corpo e representam o inconsciente real, dando corpo ao inconsciente. Desse modo, ele situa a ligação entre o corpo e o gozo, ao destacar que o corpo é propriedade do corpo vivo que fala. Os efeitos que as palavras provocam no corpo, capturam e perturbam o corpo. Nesse sentido, vida na experiência analítica apresenta-se sob a forma de um corpo que goza. O corpo vivo é condição de gozo, pois o gozo só existe por meio de um corpo que fala e goza de múltiplas maneiras.

Uma pergunta que se repete bastante é: qual o lugar e importância do corpo para a psicanálise? O que é o corpo para a psicanálise de orientação lacaniana? Na experiência de análise, o ser falante se depara com os acontecimentos de corpo por meio dos quais seus sintomas são traçados. Esses traços podem ser lidos na presença de um analista que também tem corpo, sua marca, seu corpo, seu estilo. Trata-se de ler no dizer do ser falante os significantes que ressoam no corpo. A presença viva do analista permite que o analisante substitua a consistência corporal imaginária do começo da análise pela experiência do real no final de análise.  Assim, desde os traumas iniciais que constituíram o ser falante, passando pela entrada e percurso de análise, tanto para o analisando, quanto para o analista, o corpo existe na experiência analítica.

Back To Top