15 de setembro de 2022
Uma investigação sobre a devastação a partir da ópera Salomé de Richard Strauss1
Por Anna Rogéria Nascimento de Oliveira
Ópera faz ressoar no corpo o desenrolar da história cantada pelos personagens. Salomé se apaixona e faz de sua vida uma orientação para a devastação e a morte. Neste trabalho não se trata de uma investigação sobre a personagem Salomé, mas, sim, de uma tentativa de pensar o amor em sua vertente real, que se apresenta aqui na forma de devastação, a partir do recorte do encontro de Salomé com João Batista.
A história da ópera: está acontecendo a festa de aniversário de Herodes, Salomé entediada e incomodada por ser olhada de maneira inadequada pelo marido de sua mãe, Herodes, sai da festa e vai para fora do palácio. Ela olha a lua. Ouve com estranhamento a voz de João Batista. Exige que o soldado o traga. Uma excitação na música dá o tom da cena. Interessante observar que esta ópera não tem prelúdio como as duas outras óperas anteriores de Strauss. Não há preparação para o amor, nem para o real. Não há possibilidade de prelúdio. Vejamos, então, o que canta Salomé: “Apenas quero olhar para esse estranho profeta. Ah! Devo olhá-lo mais de perto”. Esse momento é de ruptura, nada mais será o mesmo. O profeta sai da cisterna. Salomé, absorta em sua contemplação, recua lentamente diante dele. “Seus olhos são o mais terrível de tudo, são como negras cavernas onde habitam dragões. Mas, como está enfraquecido. Parece estátua de marfim. Com certeza é casto como a lua. Sua carne deve ser fria. Sua voz é música para meus ouvidos. Fale mais, fale mais, sua voz é música para os meus ouvidos e diga-me o que tenho que fazer.” Miller (1998) precisa que a demanda de amor, em seu caráter potencialmente feminino, retorna ao falasser feminino:
“Escrevo o falasser feminino como o Não-Todo que se dirige ao parceiro, e se dirige pela demanda de amor, que é potencialmente infinita, e que retorna ao parceiro feminino, precisamente sob a forma de devastação.” (MILLER, 1998, p. 98-99)
O encontro de Salomé e João Batista provoca uma ruptura. Salomé, que antes vivia para ser um objeto do consumo incestuoso de Herodes, e de sua própria mãe, Herodíades, se interessa por João Batista. Sua voz a excita. Algo de uma certa serenidade invade Salomé por um curto momento, a música é mais calma e ela canta com mais delicadeza as notas musicais. Ela parece ter encontrado algo novo, um sentido para o lugar do vazio de sua existência.
Interessante observar, que a construção freudiana do amor demonstra a repetição. Lacan propõe: só há gozo do Um. O amor inscrito mais além da repetição, único para cada Um. Não há um amor igual a outro. (Ventura, O. 2021). Neste sentido, aspirada pela experiência de gozo que a invade, canta Salomé: “Estou enamorada de seu corpo! Seu corpo é branco. Deixe-me tocá-lo”. Ele a rejeita. Pela primeira vez em sua vida sente o horror da rejeição. “É sua boca o que desejo, sua boca é mais encarnada que as patas das pombas que habitam o templo. Deixe-me beijar sua boca.” Agora ela canta para si mesma com desespero: “Quero beijar sua boca. Quero beijar sua boca. Deixe-me beijar sua boca.” Nada do que ele diz faz cessar o seu gozo sem limite. “Quero beijar sua boca. Deixe-me beijar sua boca”. Ela repete sem cessar. A cena é muito forte, o capitão Narraboth, apaixonado por Salomé, desesperado com o comportamento da princesa, se apunhala, caindo morto no chão. João Batista a despreza mais uma vez e diz que ela deve procurar a salvação. Salomé repete uma vez mais: “Beijarei sua boca”. Para uma mulher o signo de amor é essencial. Ela busca o signo de amor no outro, às vezes mesmo o inventa (Miller, 2019). Em Salomé, é no corpo que o amor se faz ler. A ópera demonstra a marcação no corpo dos efeitos do gozo experimentados por ela no encontro com o amor e com sua outra face, a devastação, que comparece como retorno de uma demanda de amor infinita.
Diante da impossibilidade da relação sexual, poderá surgir uma solução inédita e singular, uma saída da impotência ditada pela fantasia, um amor mais digno. Não é o que acontece com Salomé: ela insiste que ele a fale, que ele a complete, pois, o amor na sexualidade feminina é tecido de gozo, a resposta de João Batista é o silêncio. Como precisa bem Bessa (2012), o gozo feminino necessita que seu objeto fale, pois não há amor no silêncio. A partir desse encontro contingente, por um breve momento, Salomé tem a chance de experimentar algo fora da repetição de sua vida de objeto-dejeto. Ela pôde inclusive ver o mundo que existe fora dela a partir do amor que entrega a João Batista. Entretanto a avalanche de gozo destituiu qualquer possibilidade de enlaçamento fora da tragédia, un ravage irrompe destruindo tudo e todos que estavam próximos do casal.