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Uma investigação sobre a devastação a partir da ópera Salomé de Richard Strauss1

Por Anna Rogéria Nascimento de Oliveira
Olive Fremstad in Richard Strauss’s “Salome,” performed at New York City’s Metropolitan Opera House in January, 1907.Photograph from DEA / Biblioteca Ambrosiana / Getty
Olive Fremstad in Richard Strauss’s “Salome,” performed at New York City’s Metropolitan Opera House in January, 1907.Photograph from DEA / Biblioteca Ambrosiana / Getty

Ópera faz ressoar no corpo o desenrolar da história cantada pelos personagens. Salomé se apaixona e faz de sua vida uma orientação para a devastação e a morte. Neste trabalho não se trata de uma investigação sobre a personagem Salomé, mas, sim, de uma tentativa de pensar o amor em sua vertente real, que se apresenta aqui na forma de devastação, a partir do recorte do encontro de Salomé com João Batista.

A história da ópera: está acontecendo a festa de aniversário de Herodes, Salomé entediada e incomodada por ser olhada de maneira inadequada pelo marido de sua mãe, Herodes, sai da festa e vai para fora do palácio. Ela olha a lua. Ouve com estranhamento a voz de João Batista. Exige que o soldado o traga. Uma excitação na música dá o tom da cena. Interessante observar que esta ópera não tem prelúdio como as duas outras óperas anteriores de Strauss. Não há preparação para o amor, nem para o real. Não há possibilidade de prelúdio. Vejamos, então, o que canta Salomé: “Apenas quero olhar para esse estranho profeta. Ah! Devo olhá-lo mais de perto”. Esse momento é de ruptura, nada mais será o mesmo. O profeta sai da cisterna. Salomé, absorta em sua contemplação, recua lentamente diante dele. “Seus olhos são o mais terrível de tudo, são como negras cavernas onde habitam dragões. Mas, como está enfraquecido. Parece estátua de marfim. Com certeza é casto como a lua. Sua carne deve ser fria. Sua voz é música para meus ouvidos. Fale mais, fale mais, sua voz é música para os meus ouvidos e diga-me o que tenho que fazer.” Miller (1998) precisa que a demanda de amor, em seu caráter potencialmente feminino, retorna ao falasser feminino:

“Escrevo o falasser feminino como o Não-Todo que se dirige ao parceiro, e se dirige pela demanda de amor, que é potencialmente infinita, e que retorna ao parceiro feminino, precisamente sob a forma de devastação.” (MILLER, 1998, p. 98-99)

O encontro de Salomé e João Batista provoca uma ruptura. Salomé, que antes vivia para ser um objeto do consumo incestuoso de Herodes, e de sua própria mãe, Herodíades, se interessa por João Batista. Sua voz a excita. Algo de uma certa serenidade invade Salomé por um curto momento, a música é mais calma e ela canta com mais delicadeza as notas musicais. Ela parece ter encontrado algo novo, um sentido para o lugar do vazio de sua existência.

Interessante observar, que a construção freudiana do amor demonstra a repetição. Lacan propõe: só há gozo do Um. O amor inscrito mais além da repetição, único para cada Um. Não há um amor igual a outro. (Ventura, O. 2021). Neste sentido, aspirada pela experiência de gozo que a invade, canta Salomé: “Estou enamorada de seu corpo! Seu corpo é branco. Deixe-me tocá-lo”. Ele a rejeita. Pela primeira vez em sua vida sente o horror da rejeição. “É sua boca o que desejo, sua boca é mais encarnada que as patas das pombas que habitam o templo. Deixe-me beijar sua boca.” Agora ela canta para si mesma com desespero: “Quero beijar sua boca. Quero beijar sua boca. Deixe-me beijar sua boca.” Nada do que ele diz faz cessar o seu gozo sem limite. “Quero beijar sua boca. Deixe-me beijar sua boca”. Ela repete sem cessar. A cena é muito forte, o capitão Narraboth, apaixonado por Salomé, desesperado com o comportamento da princesa, se apunhala, caindo morto no chão. João Batista a despreza mais uma vez e diz que ela deve procurar a salvação. Salomé repete uma vez mais: “Beijarei sua boca”. Para uma mulher o signo de amor é essencial. Ela busca o signo de amor no outro, às vezes mesmo o inventa (Miller, 2019). Em Salomé, é no corpo que o amor se faz ler. A ópera demonstra a marcação no corpo dos efeitos do gozo experimentados por ela no encontro com o amor e com sua outra face, a devastação, que comparece como retorno de uma demanda de amor infinita.

Diante da impossibilidade da relação sexual, poderá surgir uma solução inédita e singular, uma saída da impotência ditada pela fantasia, um amor mais digno. Não é o que acontece com Salomé: ela insiste que ele a fale, que ele a complete, pois, o amor na sexualidade feminina é tecido de gozo, a resposta de João Batista é o silêncio. Como precisa bem Bessa (2012), o gozo feminino necessita que seu objeto fale, pois não há amor no silêncio. A partir desse encontro contingente, por um breve momento, Salomé tem a chance de experimentar algo fora da repetição de sua vida de objeto-dejeto. Ela pôde inclusive ver o mundo que existe fora dela a partir do amor que entrega a João Batista. Entretanto a avalanche de gozo destituiu qualquer possibilidade de enlaçamento fora da tragédia, un ravage irrompe destruindo tudo e todos que estavam próximos do casal.


Referências Bibliográficas:
BESSA, G. L.P. Feminino: um conjunto aberto ao infinito. Belo horizonte: Scriptum Livros, 2012.
MILLER, J.A. O osso de uma análise. Salvador : Edigraf, 1998.
MILLER, J.A. Signos de amor in Donc: la logica de la cura. CABA: Paidós, 2019. Tradução livre.
STRAUSS, R. Salomé in Coleção FOLHA Grandes Óperas. Volume 19, São Paulo: Editora Moderna Ltda, 2011.
VENTURA, O. O amor sempre Outro in Mutações do laço social-o novo nas parcerias. Trabalhos apresentados nas XXIV Jornada EBP-MG (Fora de série) 2020. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise. 2021. P. 47-62.

[1]Trabalho apresentado nas II Jornada da Seção Leste-Oeste em 2021, com algumas modificações feitas pela autora para publicação no Boletim Arranjos 4.
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