15 de setembro de 2022
Sexualidade feminina: do registro da falta ao não-todo fálico.
Por Ana Paula F. Rezende e Jaqueline Coelho
Em entrevista à RUA[1] (Rede Universitária Americana), por ocasião do X ENAPOL, quando perguntado sobre como lidar com o ativismo de alguns movimentos atuais que questionam a psicanálise e chegam a reivindicar a interrupção de seu ensino nas Universidades, Laurent orientou rumo a um “enfrentamento à boa maneira”. Conforme sustentou, para nós, o ponto reside em consentir que há algo de falocêntrico em Freud, sem deixar de insistir no quanto isso é superado pelos avanços promovidos por Lacan.
“Lacan reordenou a obra de Freud, passando do acento freudiano da libido masculina ao gozo feminino como o mais real do assunto” (E. Laurent, 2021).
Em 1905, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade[2], Freud afirmou que a criança tem uma pulsão de saber e começa sua investigação sexual. A crença na universalidade do pênis, ou seja, a suposição de que todos os seres humanos possuem esse órgão, está posta tanto para o menino quanto para a menina. Por meio da comparação, na relação com seu próprio corpo e com o corpo do outro, ambos entram na dialética do ter ou não ter, mediada também pela palavra.
Para a menina, o clitóris é análogo ao pênis, um substituto que confere à sua atividade sexual um caráter masculino. Inicialmente, ela confia que ele irá crescer. Posteriormente, porém, a distinção anatômica entre os sexos acaba por impor suas consequências psíquicas, pois a percepção irremediável da falta, diante da castração materna, opera como uma “ferida narcísica” e resulta num sentimento de inferioridade, também abordado como “inveja do pênis”.
A partir de então, o artigo Sexualidade feminina[3] aponta três possibilidades para o desenvolvimento sexual feminino:
- a inibição sexual como resultado da insatisfação com o clitóris, que leva ao abandono da atividade fálica e, com ela, da sexualidade em geral;
- a saída pela masculinidade, à qual a menina se aferra, na esperança de ainda conseguir o pênis; e
- a aposta na maternidade, que vai afrouxar sua relação terna com a mãe, dirigi-la ao pai como objeto e afastá-la da masculinidade, encaminhando-a para a sexualidade feminina. Assim, ela muda a atividade sexual do clitóris para a vagina (zona erógena), cessa a masturbação e substitui o desejo pelo órgão pelo anseio de ter um filho, promovendo uma equivalência simbólica entre pênis e bebê.
Aqui, ficam claros a aposta no falo e o acento na falta como leituras da subjetividade feminina. Entretanto, vale destacar que isso não responde a todas as questões de Freud sobre o assunto, já que ele mantém o caráter enigmático da sexualidade feminina, qualificando-a como um “continente negro”. Na Conferência XXIII, Feminilidade[4], ele admite a complexidade do assunto, reafirmando sobre a tendência à bissexualidade, inerente a todos os sujeitos. Segundo elabora: “aquilo que constitui a masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida que foge ao alcance da anatomia” (p. 115). Portanto, já em Freud, a biologia não consegue responder sobre o real do sexo.
Além de Freud, no Seminário, livro 10, A angústia, Lacan[5] (2005) articulou a fórmula segundo a qual “à mulher não falta nada”. Em um capítulo intitulado A mulher, mais verdadeira e mais real, ele afirmou que “a falta, o sinal menos com que é marcada a função fálica no homem, […] não constitui para a mulher um nó necessário” (p. 202). No Seminário, livro 20, Mais, ainda[6], Lacan avançou na discussão sobre a sexualidade feminina quando, a partir das fórmulas da sexuação, bipartiu o gozo feminino, situando-o de um lado em relação ao gozo fálico e, de outro lado, em relação a um gozo ilimitado, opaco, suplementar, que não se deixa apreender pelas vias do significante.
Brousse (2012), no artigo O que é uma mulher?[7], afirma que, ao dizer que a mulher é não toda, Lacan não a inferioriza. Diferentemente, complementa que ela possui uma extensão de gozo – não-toda fálica –, ou seja, um Outro gozo, sem que possa ser concebida como toda apreendida na lógica da castração. A posição feminina é “assimétrica”, pois o gozo deixa de ser comparado ao masculino fálico, para ser entendido como um gozo suplementar. Lacan avança ainda generalizando esse gozo em seus seminários ulteriores.
O permanente enfrentamento à boa maneira proposto por Laurent nos concerne a todos e os desafios sobre como fazê-lo se impõem inúmeros. O próprio psicanalista aponta alguns, na referida entrevista, assinalando que, por exemplo, há correntes, especialmente na América Latina, que sustentam que Freud e Lacan são a mesma coisa, ou, ainda, que há pretensos lacanianos se propondo a empreender uma psicanálise trans, supostamente ajustando a psicanálise às discussões de gênero. Nossa principal pergunta parece ser: como manter e sustentar a lâmina cortante da verdade psicanalítica nos tempos atuais?