15 de setembro de 2022
Quando o ideal de amor faz sintoma1
Sônia Vicente (EBP/AMP)
Ao enunciar o seu enigmático aforisma – não há relação sexual –, Lacan demonstra topologicamente que na estruturação de todo falasser há um furo impossível de ser preenchido. Daí ele dizer que a topologia é a estrutura[2] . Aqui, trata-se, precisamente do recalque originário, da Urverdrängung freudiana, que não se anula jamais.
Se a realidade do inconsciente, independentemente da estrutura, demonstra que a relação sexual não existe, uma resposta a esse vazio de significantes precisa, então, ser criada. Isto é, o final de uma análise exigiria do falasser uma invenção singular, algo que não tem mais valor de semblante fálico com o qual, durante todo tempo, o falasser tentou tamponar o furo da estrutura.
Ao dizer que numa análise deve-se “ir mais-além do Pai na condição de servir-se dele”[3], Lacan faz uma equivalência entre o Pai simbólico e a própria linguagem. Ou seja, aponta a direção de um tratamento analítico ao recomendar servir-se da linguagem, passar por uma operação discursiva para tentar alcançar a primariedade do real do gozo.
É nessa via que, desde sempre, o falasser tenta dar conta da sua relação com o Outro, dar conta da sua parceria sintomática. Referir ao parceiro sintoma é afirmar que aquilo pelo que o falasser se interessa, procura, é o gozo, a partir do Outro. Isso quer dizer que entre falasseres, tanto na posição feminina quanto na posição masculina, há sintoma. Não devemos esquecer que o inconsciente não se mostra claramente, ou seja, advém somente de forma embaçada, o que permite apontar que o sintoma se reveste de duas modalidades de gozo: o sentido gozado produzido pelo significante e o gozo do corpo próprio que incide sobre o objeto a, modalidades de mais-de-gozar que se reportam ao Outro.
Entretanto, é preciso estar atento ao fato de ser somente pela via do amor que a abertura ao Outro torna-se possível, o que leva a concluir ser o amor tecido no gozo. O amor não está só na busca de significantes, ele busca também gozo. Essa indissociável mistura de amor e gozo pode levar o nome de devastação, que significa conduzir a um estado de deslumbramento, mas também a um aniquilamento[4]. É nesse sentido que apreendemos que o amor não se detém no âmbito imaginário e simbólico, ele se dirige ao ser. De modo mais preciso, ao ser do outro[5], razão pela qual se quer destruir isso que supomos que o outro é. Vamos, assim, da fascinação narcísica para a pulsão de morte, para o real.
Freud alertava: “o amor é a forma mais primária de laço social, no entanto, o estado amoroso pode conduzir a romper os laços sociais, ao implicar fascinação ou servidão”[6]. Aqui, já podemos entrever uma alusão a um mais-de-gozar devastador.
Essas assertivas são constatadas, principalmente, na clínica com mulheres, o que me leva a ressaltar um ponto específico: a fascinação que uma outra mulher produz em alguns falasseres femininos. Uma adoração que evidencia a face do amor, que se apresenta fora de sentido, fora sexo, um fenômeno que não conhece limite, cuja ressonância se traduz na expressão: você é apenas o que eu sou. Pela ilusão de ter o objeto (a)sexuado, tampona o furo estrutural, denega a castração e dá sentido à sua existência, obtendo, ao mesmo tempo, o gozo do se bastar. Uma maneira de estar próxima daquilo de que mais tem horror, seu desejo, no que ele expressa sua falta. Na procura de uma análise, não manifesta nenhuma grande queixa, evidenciando angústia somente quando o objeto lhe escapa.
Lacan articula o desejo da mãe ao enigma do feminino, dizendo que a mulher se encontra com um ponto enigmático desse desejo que se presentifica, para ela, na relação com o Outro. Esse encontro com o Outro da falta, reafirmando que o Outro não pode ser encontrado, dá o caráter louco e enigmático ao amor observado, principalmente, na histeria. O que, clinicamente, se assemelha a alguns casos de psicose, sobretudo aqueles em que a erotomania é pregnante.
O enigma instalado pelo objeto que não permite ser pego deixa a mulher perplexa frente ao que aquele corpo lhe suscita, sem possibilidade de dar um sentido às ressonâncias de seu próprio corpo. Esse objeto a horroriza e a fascina: possuí-lo, torna-se uma obsessão. Consumida pela imagem adorada, torna-se refém do fascínio ao dar a ilusão de existência aos corpos, fazendo existir o que não existe. É por esse caminho que uma mulher faz sua escolha amorosa sacrificando o que tem de mais precioso: seu ser.
É preciso entender que se o sentimento amoroso pode ser qualificado de narcísico, é porque vai além da imagem, direcionando-se ao ser daquele que é amado, o qual advirá no lugar da falta estrutural e se alojará nesse ponto inominável. O amor por um corpo localiza um traço obscuro que é mudo e surdo à fala. Dessa maneira é que o amor se apega a um corpo, ao qual o falasser feminino pede que testemunhe o seu ser mulher, possibilitando-a construir seu “delírio” sobre a outra, com o qual vela o vazio da inexistência d’A Mulher.
O corpo da mulher amada oferece o segredo provocado pelo furo irredutível. Sua presença atrai o amódio[7], uma enamoração de amor e ódio, por trazer aquilo que não pode ser nomeado. Quando o falasser ocupa o lugar de amante, legitima sua própria falta no Outro, advindo, então, o ódio que logo é semblantizado em amor. Ela, como amante permanece sendo aquela que não é, mas faz-se possuidora de um saber sobre a amada, domínio dos significantes, na tentativa de se colocar na ordem do todo.
Dessa forma, se devota a um amor digno do registro da experiência masculina. Trata-se do amor cortês[8], com seu culto ao amor e à exaltação da “Dama” como ideal, colocando em evidência o caráter especular dessa relação. Louva uma Mulher definida como “uma criação do espírito”[9], por isso sublime, sagrada, não visando outra satisfação além do serviço à “Dama”. Imagem perfeita do amor terrestre idealizado, no qual A/ mulher é erigida na condição de puro invólucro do nada, o que a torna desejável.
O amor cortês, margeando o vazio da relação, encontra sua satisfação que é obtida pelo modo de sublimação, ou seja, elegendo um objeto, um parceiro desumano. Um amor que busca o que é desejado e que está para além da “Dama”. É nisto mesmo que o falasser idolatra seu sentimento ao nada, que está mais além do objeto do amor, o qual se realiza como imagem. Nesse sentido, demanda o amor, mas se satisfaz tendo o objeto como idealizado. Amor absoluto de uma paixão, miragem do encontro com o impossível. Uma tentativa falha de fazer suplência ao ‘não há relação sexual’.
A concepção lacaniana indica, na sexualidade feminina, um matiz referido ao falo, assinalando o aspecto do dano sofrido por não tê-lo, colocando o falasser em um lugar reivindicatório, posição ocupada pela mulher na histeria. Ela, numa posição imaginária viril, ao invés de colocar o homem como conector, interroga a outra mulher como seu duplo, o que a faz permanecer aferrada ao seu narcisismo.
O narcisismo freudiano foi relido por Lacan como estádio do espelho, que é uma experiência de júbilo e de horror diante da imagem à qual o sujeito se aliena. O espelho permite que se afirme a imagem ilusória de totalização, no lugar onde algo permanece irreconhecível. A identificação com o outro é imediata e, por não haver a mediação do simbólico, o Outro é a um só tempo rival e igual. Não há um investimento libidinal no significante do gozo – o falo, mas na imagem, no corpo da outra mulher, na satisfação narcísica, evidenciada no esgar de gozo que surge ao falar do sublime do objeto.
Lacan assinala também um outro aspecto no qual uma mulher ama a partir de sua posição de não-toda, mais além da ordem fálica, que corresponde à falta de um significante que possa representá-la, o que implica na espera impossível de uma identificação feminina. Isto traz consequências uma vez que impulsiona mais a voracidade do amor que o desejo, evidenciando que a mediação fálica se impõe para limitar os desvarios. Em outras palavras, “quando para o falasser o limite, a barra ao gozo advém sob a forma de ideal ou de crença, dá a ilusão de que a relação sexual para de não se escrever”[10].
Esse falasser feminino, surpresa de ser presa da imagem de uma mulher, substituta da mãe, ilustra uma modalidade de laço amoroso que, fazendo com o eu ideal um par, exclui o sexo, delira estar a salvo da castração, imaginariza um “felizes para sempre”, mas, paradoxalmente, abre lugar para a solidão e para o gozo autístico. Um corpo se goza.
Sendo assim, lá onde o gozo se tece como amor, das mais dignas formas às mais devastadas, passando pelas mais ou menos satisfatórias, o que há? Não há. Só há quando há par, quando se põe o Outro a par, recusado ou vacilante, encoberto ou fugidio, lá onde o enigma tenta fazer par com a iteração que aparece lá onde o gozo acon-tece, tece…acontecimento de corpo: eis o sinthoma presente!
É nessa orientação que, frente ao enigma que a questão do ser mulher encarna, frente à pergunta que embaraça – “o que quer uma mulher?” – afirmamos, com Freud: um analista! Que lhe responda com uma palavra vazia modelada sobre seu delírio de cada dia e que empreste seu corpo para fazer ressonância aos significantes de gozo, levando o falasser a apreender que só há gozo do corpo próprio e da sua fantasia. Talvez o vazio deixado pelo analista possa proporcionar um encontro, fazer nascer um novo amor! Aí encontramos o que Lacan aspira como “amor mais digno”[11]– amar o seu traço-letra – seu sinthoma.