15 de setembro de 2022
O MISTÉRIO DA SEXUAÇÃO
Por Hítala Gomes
Cristina Drummond (EBP/AMP)
O QUE CHAMAMOS DE SEXUAÇÃO
Começo pelos termos que vocês escolheram para nomear o caminho de investigação que levará à jornada de trabalho da SLO. O termo mistério é encontrado no primeiro seminário de Lacan, quando ele fala do mistério da presença do analista. Mas ele toma um valor maior em relação ao tema da sexuação no seminário 20, quando Lacan diz que “o real é o mistério do corpo falante, é o mistério do inconsciente”. Mistério desatrelado da sacralidade religiosa, e que coloca o corpo no cerne da experiência analítica. Mistério é o termo que Miller destaca em sua conferência “O inconsciente e o corpo falante”[1] e que aponta o trabalho de Lacan para dar uma resposta distinta da que Freud deu a respeito da pulsão, entre o psíquico e o somático, que tem um lado de representação de palavra e um lado de libido. Lacan buscou incessantemente dar conta desse mistério, que é a maneira como o gozo e o sistema do Outro podem se manter juntos.
Já o termo sexuação não se encontra presente no dicionário de língua portuguesa, mas foi trazido por Lacan com um uso, que podemos dizer que é próximo do neologismo, para introduzir algo que a psicanálise tem a dizer de maneira distinta, mas bastante precisa e específica, em relação ao termo de sexualidade que está presente em muitos outros discursos.
Miquel Bassols nos diz que a palavra sexuação[2] (sexuation) começou a ser usada na língua francesa no final do século 21 como forma substantiva do verbo sexuer, que tinha o significado de adotar ou determinar nos seres vivos um caráter sexual específico, feminino ou masculino. A palavra foi importada para outras línguas se apoiando por um lado no campo da biologia, a chamada sexuação física, e por outro no campo da sociologia e psicologia, a sexuação psíquica e traz em si a marca do binário macho/fêmea.
Durante o século 20, o termo se funde com o enigma do real e se torna mais difícil se de situar a diferença que está em jogo, e o que Lacan vai deixar claro é que não há maneira de definir a diferença sexual, nem a partir do real do organismo vivo, nem a partir da cultura ou como sistema cognitivo. Lacan diz que não se sabe como se reparte o par homo/hetero em cada espécie, na espécie humana há um x, mas não há uma correspondência exata entre o simbólico da linguagem e o real a partir da sexuação biológica.
Há vinte anos ocorreu um congresso da Associação Mundial de Psicanálise no qual os grupos do Cereda se reuniram em torno do tema Como o sexo chega às crianças. Tínhamos no seminário As formações do inconsciente[3], a tradição e o falo como pontos de referência para nossa leitura. Na etapa fálica primitiva, a criança investida de valor fálico para a mãe, é o signo de sua tomada no simbólico. A passagem do ser ao ter o falo, onde o pai priva a mãe daquilo que ela não tem, é decisiva para a posição da criança na sexuação. E a saída do Édipo é demarcada pelas provas que um pai dá daquilo que tem, qual seja, o falo, dando início ao que decorre da significação fálica. O complexo de castração permite, assim, segundo Lacan, a instalação, no sujeito, de uma posição inconsciente sem a qual ele não saberia se identificar ao tipo ideal de seu sexo.
No entanto, em O avesso da psicanálise[4], Lacan aponta o caráter estritamente inutilizável do complexo de Édipo e, em 1970, anuncia um além do Édipo. Este seminário abre o caminho para as fórmulas da sexuação, a partir de uma releitura do édipo feminino no caso Dora. Nessa leitura ele questiona o pai idealizado freudiano, e situa a castração não como uma fantasia, mas como a operação real da linguagem sobre o corpo. Entramos no campo do gozo e da função paterna encarnada e transmitida, referências fundadas também na releitura do falo na experiência de Hans e das soluções sintomáticas como resposta ao sexual, tomado como algo que vem de fora, hetero, e que faz furo no saber, tal como podemos ler também na Conferência de Genebra sobre o sintoma[5].
Mais vinte anos se passaram e ainda nos servimos dessas referências para pensarmos o encontro com o sexual, e o centrarmos em torno do acontecimento, reforçando a ideia de que o de que se trata é de um encontro com um real diante do qual o sujeito se coloca a trabalho para se arranjar. O enfoque muda da solução a um complexo, para dar lugar à leitura da resposta singular, que surge diante desse encontro com o gozo e com a falta de um saber que o acolha. Hoje colocaríamos o tema de modo distinto: que sexuação possível para um ser falante? Tomamos as elaborações de Lacan a partir do seminário …ou pior[6] onde ele já não pensa a sexualidade como a identificação aos ideais da masculinidade e da feminilidade, mas como a sexuação, que se faz a partir de uma escolha de gozo, uma decisão do sujeito.
O que ocorreu nesse espaço de tempo, diz respeito às mudanças no simbólico, que nos trazem novas configurações subjetivas e novas respostas sintomáticas. O mundo dessimbolizado destitui a lei e o interdito, e os substitui pelas normas e suas pluralidades. São novas maneiras de distribuição do gozo, a partir da disjunção entre sexo e gênero. A mutação do discurso do mestre para uma lógica capitalista se impõe no campo discursivo, e elimina a barra que marcava um impossível. Em consequência, surgem novos arranjos sintomáticos e fantasmáticos sem o auxílio da ancoragem edípica, e eles chegam mesmo à utopia de afirmar uma possibilidade de uma posição sexuada que dispensaria o Outro. São novas amarrações sem referência ao nome do pai, evaporação ou inexistência do nome, ao invés de foraclusão ou adesão simbólica.
Trata-se de um novo regime de funcionamento do Outro, onde esse Outro passa a ser o corpo. Lacan ao desmistificar o pai, faz do sexo não uma identificação decorrente da solução edípica, mas uma um processo de subjetivação em nome da sexuação dos corpos. Há uma inadequação do significante para nomear o gozo e, por outro lado, uma dificuldade para sintomatizar a posição sexuada. A proliferação de significantes deixa muitas vezes em suspenso a amarração identificatória, que anteriormente era um recurso mais presente para localizar uma posição sexuada ou mesmo produzir um sintoma.
A subjetividade de nossa época, segundo Marie-Hélène Brousse[7], é marcada por um declínio da dimensão da metáfora, o que faz com que a distância entre a fala e o real diminua. A dimensão do “todo mundo delira” passou para o real, implicando uma perda do lado dos semblantes. Há ao mesmo tempo os gêneros e um real, que tende a se libertar dos semblantes. Ela resume essa mudança dizendo que se apresenta o corte entre o corpo e o falante. A psicanálise considera a diferença radical entre os sexos, mas ensina que há distintas maneiras de eles se repartirem. Se há homens e mulheres, eles não se referem a nenhuma essência, e não há nada que inscreva a diferença deles fora do discurso. Esta só permite representá-los por um par de significantes, divisão binária da qual teremos que fazer uso para representar o não binário, isto é, o gozo Um. A perspectiva da psicanálise é a de manter ligado o corpo com o falante, sem que haja qualquer norma para um bom arranjo, ou um bom modo de responder a seus impasses.
CORPO E SEXUAÇÃO
Assim, a maneira traumática como cada um teve a experiência de ter seu corpo tocado pela palavra será retomada em seu processo de sexuação, a partir de um novo encontro traumático com o real do sexual. Daniel Roy[8] nos fala de uma maneira bastante esclarecedora do que ele chama de experiências do corpo e que tornam-se se tornam o fundamento da relação entre corpo e fala para cada um.
Essas experiências do corpo são de três ordens e se distribuem nos efeitos sobre o imaginário, o simbólico e o real. A primeira é a que diz respeito à experiência especular do corpo como imagem. Ele localiza dois efeitos da língua sobre o corpo imaginário: a adoração do corpo e a falta sob todas as suas formas imaginárias. Aquilo que faz falta, defeito, não se registra unicamente como um « a menos », mas eventualmente como um « em excesso ». A esses dois, Roy acrescenta um terceiro efeito: aquilo que faz mancha, mancha física ou mancha moral.
Quanto aos efeitos da língua sobre o corpo mortificado pela língua e representado pelo significante, ele traz a marca do falo simbólico que designa o efeito sobre o corpo da incorporação do corpo do simbólico. É ao mesmo tempo uma negativação e uma localização de gozo, ao mesmo tempo um « não » ao gozo – o efeito de castração – e um « nome » – o traço unário. Mas há no corpo vivo alguma coisa que não se deixa negativar, e que, por isso, cria um furo no simbólico, um furo no saber, o sexual. Os efeitos sobre o simbólico são então a marca que pode fazer nomeação e um efeito de furo, que se registra subjetivamente como enigma, fundamentalmente enigma do sexual.
Mas Miller nos ensinou a reconhecer o efeito de impacto sobre o corpo vivo do significante sozinho, que se isola num regime da palavra que privilegia o fora-do-sentido, disjunto do Outro. Não se trata aí dos efeitos corporais do significante, mas efeitos de gozo do significante, da lalíngua, do conjunto de equívocos que a história de cada um deixou permanecer. A lalíngua não contém ficções, ela repercute no corpo transformando-o numa câmara de ecos, nele depositando traços dos quais ele se goza. Há, portanto, um terceiro efeito corporal da língua, o afeto, essencial para tomar a clínica atual.
Por isso a experiência da psicanálise traz cada vez mais em seu cerne a questão, o mistério como vocês escolheram nomear, o como a diferença introduzida pela linguagem toca o gozo de cada falasser, um por um, sem ter uma norma estabelecida e posteriormente como esse gozo pode ou não ser tratado pelo simbólico, pelo campo do saber. A posição que o sujeito toma desde sua infância em relação ao fator sexual constitui o gérmen de sua diferença absoluta, a qual não se enraíza na segregação. Nem hetero, nem homo, nem trans, todo falasser experimenta em seu corpo que não há objeto adequado para a pulsão e que não existe nem complementaridade nem harmonia sexual entre os seres infectados pela linguagem.
Nos deparamos cada vez mais com casos em que o que está em questão na resposta do ser falante não tem nada a ver nem com o falo nem com a diferença sexual. Assim, diante de uma espécie de epidemia identitária na atualidade, diante do não há relação sexual há arranjos mais ou menos contingentes e sintomáticos, que são sustentados mais por uma amarração fantasmática do que por uma solução de sexuação. Nessa proliferação de auto assignação do sexo, Silvia Baudini nos interroga se até mesmo a fantasia ainda serve para os sujeitos tratarem de sua sexualidade. Ela se pergunta se a frase “uma criança se auto-percebe” substituiria a frase freudiana que localiza a função da fantasia, “bate-se numa criança”. Nessas embrulhadas da sexuação que decorrem do discurso, mas também da maneira como cada sujeito se posicionou, como ele acolheu uma marca de gozo que não vai variar, muito além da labilidade das identificações, encontramos infinitos gêneros, sob o comando de uma lógica do supereu, que apresenta um gozo que não encontra nem o limite fálico, nem o limite feminino do não-todo.
Lacan acaba dizendo no seminário 21 que “o ser sexuado só se autoriza por si mesmo… e por alguns outros”[9]. E precisamos completar que se autoriza também com o apoio dos significantes de uma época e de suas comunidades. Nós queremos nos valer das referências de Lacan para ler em nossa prática a solução que cada um pode encontrar diante desse mistério, como cada um aprendeu a fazer com o que tocou tão cedo seu corpo falante. Queremos também nos orientar na discussão atual dos discursos de gênero, dos impasses para dar lugar na língua para o que as novas respostas parecem interrogar.
Há o sintoma como acontecimento de corpo decorrente do encontro com o significante sem sentido estabelecido, e há o encontro com o gozo sexual, que se apoia sobre essa maneira singular pela qual cada ser falante foi tocado pela palavra. Se tomávamos o encontro com o sexual como algo que faz furo e que aciona uma busca de saber, agora nos deparamos com situações em que esse encontro não localiza qualquer furo, provoca um desarranjo e o sujeito, como diz Miquel Missé[10], “transita porque tem alguma coisa que tem que reordenar”.
DA CASTRAÇÃO MATERNA À INEXISTÊNCIA DA MULHER
Desde seu texto A significação do falo Lacan isola o encontro com a castração materna como ponto estrutural fundamental para a criança. Entre a criança e a mãe há a relação que esta tem com o significante do seu desejo, o falo, isto é, para onde ela como mulher endereça seu desejo, como ela trata a falta: castração, privação ou frustração. Diante da descoberta da castração da mãe há uma mudança na subjetividade da criança da qual a angústia testemunha. A criança tem uma urgência, uma pressão para responder a este encontro, para elaborar uma solução diante da castração materna e assegurar seu passo na sexuação. O golfo da castração a impulsiona a inventar uma solução sintomática ou a uma passagem ao ato como vemos na clínica das psicoses. A questão é que hoje a criança tem muitos problemas para responder a questão da sexuação e não só lança mão dos semblantes, mas nos encontramos diante de uma sexualidade fluida. Penso que podemos tomar mais uma vez os casos que são conhecidos por todos, já que decorrem da clínica de Freud e também da construção de Lacan para pensar a relação sempre traumática do falasser com o sexual e nos orientarmos diante dessa fluidez.
Hans e o Homem dos Ratos nos ensinam a respeito dos casos em que o sujeito pode fazer recurso a um sintoma a partir do encontro com o sexual que lhe faz enigma. O caso Hans é paradigmático no que se refere aos impasses da criança para metaforizar o encontro com o real do sexo enquanto gozo do órgão. O sujeito encontra um drama que o divide: o gozo provoca nele o que Lacan chamou de um “esquartejamento pluralizante” que fraciona a unidade de seu corpo que até então se organizara numa unidade especular a partir da identificação com o falo imaginário (i(a)). É a introdução do real no imaginário.
A realidade sexual é descoberta por Hans inicialmente sobre seu próprio corpo e o Wiwimacher, assim nomeado por ele, lhe traz com suas primeiras ereções um encontro com o gozo. Num primeiro tempo, Hans interpreta esse gozo do órgão com os significantes que lhe são disponíveis em seu mundo e busca encarná-lo nos objetos externos, no cavalo que bate as patas, que cai, que relincha. Assim, ele diz que seu pipi pula e morde como um cavalo. A criança tenta relacionar a realidade sexual estranha, fora de sentido, com a linguagem. Vemos, no entanto, que esses significantes são sempre insuficientes para dar sentido a esse gozo que Lacan chama de hetero, isto é, estranho, de fora. É um novo gozo que surge e vem se associar ao corpo do sujeito.
A saída do sujeito é pelo sintoma que é a expressão da rejeição de um gozo do qual o sujeito não compreende nada e o qual ele tem a tarefa de encarnar. Vemos que Hans tem muitas dificuldades para inscrever seu gozo sob o significante fálico. Ele começa um trabalho forçado e intenso de elaboração para domar esse gozo com palavras e ao mesmo tempo cifrá-lo e é esse trabalho que sua fobia nos mostra. Seu sintoma testemunha a sua invenção para organizar sua experiência. No momento em que Hans deixou de acreditar no falo materno ele perde sua identificação com essa posição, mas não coloca o pai como agente dessa privação. Há uma “carência paterna”, para a qual ele convoca como um outro agente castrador, o cavalo, que se torna uma metáfora do pai.
E Lacan vai acompanhando todas as fantasias de que ele faz uso para ir se situando do lado homem das fórmulas da sexuação, um homem que não deixa de ter traços de feminilização. No caso de Hans a subjetivação de sua inscrição do lado homem é uma consequência do fato de que a eficácia do Nome-do-pai depende mais da avó paterna do que se seu pai real, resultando daí uma identificação com o ideal do eu materno. Por isso Lacan fala que ele será um cavalheiro diante das mulheres, capaz de se satisfazer com filhos imaginários.
No caso do Homem dos Ratos, o encontro com o gozo se deu em sua experiência de aos 4-5 anos ao entrar debaixo da saia de sua governanta e tocar seus genitais e seu ventre. A partir de então ele não deixou de ficar atormentado por uma curiosidade intensa de olhar os corpos das mulheres. Diante do furo do corpo Outro, diz Esthela Solano[11] o olhar, pela via da fantasia, vem se inscrever neste lugar hetero um sentido gozado. Os sintomas obsessivos de dúvida e pensamentos recobrem o objeto olhar que está no centro da neurose obsessiva.
Aprendemos a partir desses casos de Freud que a assunção de uma posição sexuada é uma invenção, ou mesmo uma defesa diante do real sexual que faz intrusão de maneira traumática quando do encontro da criança com a realidade sexual.
Nestes dois casos, os sujeitos puderam fazer uso do sintoma e da diferença sexual como recursos para localizar o gozo.
Distintos são os casos do Homem dos Lobos e de Gide, também trabalhados por Lacan e que me parecem introduzir soluções distintas. O Homem dos Lobos também teve um encontro com o real sexual na infância, mas sua produção de uma diversidade de sintomas nos fala de sua dificuldade para fazer borda a esse gozo.
Serguei tinha um caráter dócil, mas apresentou uma anorexia aos dois anos e seu caráter teve uma mudança aos três anos e meio. Ele se torna irritável e violento. O sonho dos lobos ocorre na véspera dos seus quatro anos e ele passa a ter medo de ser devorado por lobos. Sua mãe lhe conta histórias religiosas que, se acalmam sua angústia, lhe provocam ruminações e dúvidas sobre a pessoa do Cristo e o levam a proferir injúrias. Os sintomas intestinais são contemporâneos dos sintomas obsessivos e surge o fenômeno do véu, sensação desagradável de estar separado do mundo por um véu que só se levantava no momento da defecação.
Desde seu primeiro sintoma, a anorexia, diz Agnès Aflalo[12], a posição sexuada do sujeito é feminina e a angústia de morte marca uma recusa de cessão de gozo. A mudança de caráter decorre de uma tentativa de sedução da irmã, ocasião em que ele tem suas primeiras excitações sexuais, experiência que causa enigma ao sujeito. Mas só depois, com o sonho do lobo é que o trauma e o enigma do gozo do olhar são introduzidos. A insistência da angústia mostra que nem o objeto oral nem o objeto escópico são suficientes para fazer borda ao gozo que invade o sujeito. Gozo ilimitado de um Outro mau, o lobo de pé, que o quer devorar, preço que ele paga por querer fazer a relação sexual existir.
Essa recusa da castração é também desdobrada pelo neo-fetiche que o sonho traz, o rabo do lobo, que faz com que o binário homem/mulher seja substituído pela pluralidade dos lobos. A mulher recoberta por esse fetiche, o traseiro da mulher, pode ser suportada como parceira sem que ele aceite a castração materna. Ele constrói uma suplência sob a forma de uma sexuação que não passa pelo órgão peniano. Assim, sua solução à sexuação implica a existência da relação sexual e ele fica à mercê de um gozo feminino ilimitado.
Freud dizia que “a natureza e a qualidade das relações da criança com as pessoas do seu próprio sexo e do sexo oposto, já foi firmada nos primeiros seis anos de sua vida. Ela pode posteriormente desenvolvê-las e transformá-las em certas direções, mas não pode mais livrar-se delas”[13]. Essa ideia de a estrutura estar constituída precocemente para a criança segue presente nos pós-freudianos. Mas Lacan nos ensina, a partir de sua leitura de Gide, que não podemos considerar que tudo está decidido aos cinco anos de idade, e que o trabalho de construção das relações do sujeito com o desejo e com o outro prossegue em sua adolescência.
Gide nos ensina muito sobre os impasses da criança para se situar a partir dos elementos simbólicos e imaginários que recebeu de seu Outro como orientadores para a construção de uma posição sexuada e Lacan nos diz que ele só conclui uma solução para sua posição aos 25 anos. A solução de sua identificação com a criança desejada permanece comprometida em sua dependência do objeto feminino e ele precisou encontrar apoio na escrita e nos ideais de Goethe, para além do que recebeu de seu Outro familiar, para estabilizar-se numa posição sexuada.
Lacan se refere a Gide como uma “criança dividida”[14] e que o fenômeno específico que se refere à sua experiência é a Spaltung, isto é, nele coexistem dois elementos diferentes. Ele diz: “o menino Gide, entre a morte e o erotismo masturbatório, só tem do amor a fala que protege e a que interdita; a morte levou com seu pai aquela que humaniza o desejo. Por isso é que o desejo fica, para ele, confinado no clandestino”[15]
Temos nessa frase de seu escrito os pontos fundamentais que Lacan indica como estruturantes nessa criança: a relação com a morte, a falta da fala que humaniza o desejo que fica então confinado ao clandestino e a presença da fala que protege e que interdita. Essa Spaltung é lida por Lacan como um efeito da presença de duas mães. Gide teve uma mãe que deu forma a um amor morto por uma figura angélica e outra que encarnou para ele um outro desejo positivo, mas clandestino. No Seminário 5 Lacan chega a uma fórmula que Miller chama de quase matemática dizendo que é no mesmo lugar que se produz ou o Ideal do eu ou a perversão. Ele mostra que o que é determinante na posição de Gide é sua identificação com a criança não desejada. Quando pode identificar-se ao seu ser desejado, ele vai desejar os menininhos.
Para Lacan, não é por desejar meninos que Gide é perverso, mas por não poder prescindir de sua mulher a quem dá uma posição tão exclusiva que só consegue escrever para ela ou conversar com ela. O que é perverso é amá-la sem desejá-la. O que é perverso consiste no fato de que ele somente pode ser aquele que se impõe no lugar ocupado pela prima, aquele cujos pensamentos giram em torno dela. Lacan situa sua perversão no nível dessa dependência absoluta em relação ao objeto feminino.
A partir desses casos podemos ver que quando há uma falta, o saber pode ser acionado porque, por definição, a falta está localizada no simbólico. Já quando a falta não está bem localizada, o furo que a dispersão que o encontro sexual provoca não se localiza nem no corpo nem no simbólico. Estamos então no campo em que a topologia, da qual Lacan se serviu, nos ajuda a pensar em como fazer uma borda ao furo que não existe e poder fazer operar uma amarração a partir desse processo. A amarração do gozo com a lalíngua e o corpo terá que ser feita por cada um, um por um, como solução sintomática.
Como diz Daniel Roy[16], o psicanalista ensina que o sexual é o nome da diferença e da alteridade que cada ser falante. Sobre essa posição radical ele pode se apoiar para o estilo de sua ação: preservar esta singularidade, fazer borda a esta novidade quando ela provoca um excesso de violência. A diferença sexual só se atinge pela via lógica[17] e nos cabe não apenas saber ler essa lógica como acompanhar suas consequências. Se iniciamos a questão da sexuação com os efeitos do encontro com a castração materna, no estudo da sexuação na atualidade tomamos a inexistência da mulher como ponto estrutural que torna possível o vivificante do sexo para cada um.
Por cada vez mais os sujeitos não poderem fazer recurso ao simbólico, além da referência ao um sozinho, ao não binário, nos baseamos sobre o mal-entendido, que nos faz tomar o inconsciente como instrumento a partir dos equívocos de lalingua e do furo que abre a possibilidade das invenções de cada um. O inconsciente que é uma resposta do real é o que se põe a trabalho na transferência. As bricolagens que sustentam os corpos exigem uma prática do furo, tal como os Lefort nos introduziram, distinta da prática do continente, tal como foi tomada pelos kleinianos. Temos muito a aprender com as crianças autistas e psicóticas em seu trabalho enlouquecido sobre superfícies não orientáveis e no trabalho analítico com elas para criar uma articulação entre uma superfície e uma borda. Aqui não há recurso aos discursos estabelecidos, o que não impede que, em alguns tratamentos, os sujeitos acabem encontrando maneiras de se articular a eles, ainda que de modo imaginário. É com esses recursos que aprendemos no último ensino de Lacan e nas invenções das crianças, sobretudo daquelas que menos uso fazem do par significante, que nos armamos para abordar em nossa prática o mistério da sexuação. Dessa maneira continuamos a apostar na psicanálise como tratamento do real.