15 de setembro de 2022
O acontecimento de corpo e a sexuação
Por Ana Paula Fernandes Rezende
Este trabalho foi uma breve pesquisa sobre uma questão: como o acontecimento de corpo pode nos ajudar a entender sobre a questão da sexuação e seu “mistério”.
Roy (2019) aponta quatro perspectivas sobre a diferença sexual. A primeira: que o fator sexual é algo que não pode ser universal e a posição que o sujeito assume, desde a infância, frente a esse fator, introduz o “germe da diferença absoluta”. Há uma diferença que não passa por nenhum código que permite decifrar o que lhe acontece e é diante desse enigma que irão se construir as teorias sexuais infantis e as identificações. Portanto, o sexual faz a diferença. A segunda: a relação com o falo tem sua importância para os dois sexos. O modo como sujeito atravessa o Édipo e a castração convoca cada um a fazer uma eleição com relação a seu valor de uso. A terceira perspectiva: é o falo como significante, significante do desejo do Outro. Diante da castração materna, percebe que ela não o tem e faz a pergunta: o que o Outro quer de mim? A quarta perspectiva: é como o sujeito se inscreve no discurso sexual, já que ao nascer a criança é distribuída em um significante, homem ou mulher, como puro efeito de semblantes, produzindo uma identificação sexual. Roy interroga sobre a identificação sexual (homem/mulher, menino/menina) e questiona se a mesma não se encontra em crise, já que ela é instável, opera sob uma perda, sem garantia, é atual e sempre sintomática. A questão que se coloca é que os semblantes não apontam para o gozo em jogo.
Seguimos a indicação de Fajnwaks (2021) em que afirma que a sexuação implica uma dimensão real em jogo, enigmática, o que significa que o ser sexuado – o ser-para-o sexo, pode até se apoiar nas identificações e significantes que vêm do Outro, se autorizando por si mesmo, mas isso apenas recobre parcialmente o furo fundamental que a sexualidade implica. Ele afirma que, para a psicanálise, se trata de uma escolha sempre forçada, que não é livre. É muito comum, no discurso de alguns pacientes, eles dizerem que, se fosse uma escolha livre, eles escolheriam o tradicional, para não enfrentar o preconceito da família, da sociedade e até a violência. Dessa forma, a escolha não passa pela anatomia, pela cultura, mas por uma escolha forçada pelo gozo.
A sexuação se endereça às relações dos sujeitos com seu modo de gozo, em que se encontra na lógica do Um. Nessa lógica, estamos sem o Outro, sem normas pré-estabelecidas, mas na orientação do singular. Miller (2012) afirma que, no último paradigma do gozo, o conceito de linguagem passa a ser considerado como algo derivado, secundário e não originário, em relação à invenção lacaniana de alíngua. Segundo Miller, alíngua é a fala como disjunta da estrutura de linguagem, separada da comunicação. Esse paradigma é fundado sobre a disjunção do significante e do significado, a disjunção do gozo e do Outro, a disjunção do homem e da mulher sob o aforisma “a relação sexual não existe”. O Um não faz dois, já que não há uma relação de complementariedade e o ser falante tem que se haver com sua falha estrutural. O real da diferença se localiza nesse ponto, diferente dos gêneros.
Para pensar na eleição de uma posição sexuada, temos que entender o corpo a partir do mal-entendido. Lacan (2016) nos adverte que nascemos de dois seres falantes que não se entendem, não falam a mesma língua, mas que o corpo do ser falante vai carregar as marcas desse desencontro e dos significantes que o afetaram. Na psicanálise o verbo é inconsciente, ou seja, o mal-entendido. O interesse da psicanálise é o que se pode construir a partir dessas marcas? Somos falados antes mesmo de nascer, somos afetados pelas palavras ressoam e produz sintoma.
Álvarez (2020) propõe entendermos dois tempos lógicos em Lacan. O primeiro é anterior à linguagem, onde a mesma não forma um sistema, é o gozo primário de alíngua. Este é sem o Outro, pois alíngua é definida como um enxame de S1 sozinhos, que marcam o corpo e injetam excesso de gozo, fora da cadeia significante (S1-S2), como uma substância, constituindo o acontecimento de corpo. O gozo do falasser ocorre a partir do gozo de alíngua. No primeiro tempo, o inconsciente é real, sem sentido. O segundo tempo, seria o nascimento do Outro da linguagem, como uma função de saber, já que alíngua precisa de um tratamento, um saber-fazer com a elucubração sobre alíngua. A partir do saber (S2) se constitui o inconsciente estruturado como uma linguagem (S1-S2). Dessa forma, a linguagem é, então, apresentada como uma superestrutura de leis que capturam alíngua. A posição sexuada passa por esses dois tempos lógicos em que o ser falante vai lidar com essa primeira impressão do significante no corpo.
A decisão é justamente onde a palavra não alcança, onde nenhuma identificação ou traço familiar permite nomear. É preciso pensar na sexualidade como efeitos desse acontecimento de corpo que determina suas satisfações, mais além da biologia. A escolha convoca a relação de cada um com suas marcas.
A sexuação se refere à eleição do sexo, segundo Stiglitz (2019), onde cada um se autoriza por si mesmo, já que no início somos todos indeterminados. Não se nasce homem ou mulher, não se trata de gênero, mas de uma posição, “uma eleição em relação ao gozo, ao desejo e ao amor”. Ele ressalta que, na eleição, há um tempo de compreender. Assim, a letra se inscreve no choque do significante com o corpo, faz furo que convoca uma escolha, construções. Ele ressalta três consequências: 1- as palavras equivocam os corpos, 2- o equívoco abre um espaço, que é o gozo mais íntimo e conduz às ficções, às identidades sexuais, em que a identificação funciona como um remendo do furo que é vazio, 3- A sexuação seria a aceitação ou consentimento a seu modo de gozar e a eleição de objeto de satisfação, seu parceiro. A escolha começa na infância, onde o corpo é marcado por acontecimentos e experiências. Na puberdade coloca-se à prova o encontro dessas marcas com outros corpos, o encontro com o real do sexo, que nada se sabe e que cabe a invenção e o arranjo sintomático de cada um.
Para concluir, Brousse (2018) afirma que a identidade e o gênero são documentos emitidos pelo Outro. A categoria simbólica dá o lugar do sujeito ao ser falante, ou seja, a identificação surge, não do Outro, mas de Um-corpo. No lugar do amor ao Pai, do Outro, a presença do corpo, misto de imaginário e real, dá lugar ao corpo gozante. Brousse enfatiza que a única identidade que se sustenta é a identidade sintomal, que não é do sujeito, mas do corpo do qual não se escapa, de seus furos que a contingência dos significantes colocou em funcionamento nas experiências singulares de cada um.
A clínica da sexuação aponta um modo de gozar, uma eleição do gozo onde cada um vai ter que se haver com ele. O que expressa o singular, os dois modos de gozar e as posições subjetivas, quando entra no campo da diferença sexual tornam-se inalcançáveis, pois, algo dessa diferença escapa, um real impossível de simbolizar. É diante do impossível de dizer, da contingência e do singular que o falasser vai construir a sua ficção.