15 de setembro de 2022
Nora e Joyce: a parceria que cai como uma luva
Por Hítala Gomes e Lucas Fraga Gomes
Então você é também como eu, num momento no alto como as estrelas, no outro mais baixa que os mais baixos patifes? […] Dei a outros o meu orgulho e a minha alegria. Para você dou o meu pecado, a minha loucura, a minha fraqueza e a minha tristeza. [1]
Podemos usar a expressão “caiu como uma luva” em diversos contextos. Por exemplo, se estou desempregado e me é oferecido uma oportunidade de emprego, posso afirmar que foi uma situação que “caiu como uma luva”, ou seja, que veio no momento propício. Também podemos usar a expressão quando provamos uma roupa e ao vesti-la percebemos que se ajusta perfeitamente ao nosso corpo. Então, podemos dizer que ela “caiu como uma luva”. Essa última possibilidade é a que nos interessa, pois faz menção ao corpo, a algo que o molda, que o veste, que o cerra.
Pois é curioso que é justamente na aula do dia 10 de fevereiro de 1976, ou seja, quando Lacan lança a pergunta “Joyce, era louco?”, que a figura de Nora é evocada. Miller (2000) nos convoca a utilizar o termo parceiro justamente como aquilo que comparece como resultado da inexistência da relação sexual. Desta forma, convém pensarmos na função de Nora para Joyce, ou melhor, será Nora um sinthoma joyciano? Lacan chama a atenção para a especificidade dessa relação: “[…] Direi, coisa singular, que é uma relação sexual, ainda que eu diga que não há relação sexual. Mas é uma relação sexual bem esquisita […]” (LACAN, 2007, p.81).
Lacan remonta a um exemplo kantiano e afirma que é possível utilizar a mão direita da luva na mão esquerda, trata-se apenas de virar a mesma ao avesso. E é aí que entra Nora nessa parceria: “[…]. A luva virada ao avesso é Nora. É o jeito de ele considerar que ela lhe cai como uma luva.” (LACAN, 2007, p.81). Isso parece já indicar a função que ela possuía para o escritor, ou seja, nessa relação, era Nora a responsável por dar consistência ao corpo de Joyce. Ou seja, é evidente a crença de Joyce na existência da relação sexual e seu relacionamento com Nora era um esforço nesse sentido.
A esse respeito convém lembrarmos do conto “Um caso doloroso”, presente na coletânea Dublinenses, em que Joyce narra a história de James Duffy, um senhor que vive solitário e que não consegue sustentar uma relação amorosa com a senhora Emily Sinico, pois: “[…] O amor entre dois homens é impossível, porque não deve haver relação sexual e a amizade entre homem e mulher é impossível, porque é preciso haver relação sexual […]” (2008, p.110). Esse imperativo sobre a relação sexual aparece muito claramente nas cartas de Joyce a Nora, em que o escritor aparece com uma demanda constante que oscila entre o carinho e a degradação de sua parceira:
[…] Para Joyce só há uma mulher. Ela é sempre do mesmo modelo, e ele só a enluva com a maior das repugnâncias. É visível que apenas com a maior das depreciações é que ele faz de Nora uma mulher eleita. Não apenas é preciso que ela lhe caia como uma luva, mas que ela o cerre como uma luva. Ela não serve absolutamente para nada. (LACAN, 2007, pp.81-82).
Dessa maneira, o processo de degradação obedece a lógica de transformar Nora em um objeto-dejeto como uma forma de localização de seu gozo, tal como nos indica Mattos (2021). Para efetuar esse processo de localização, Joyce deprecia sua parceira amorosa, algo evidenciado em várias cartas tal como quando ele a nomeia de “avezinha fodedora”, nomeação presente nas cartas de 8 e 9 de dezembro de 1909. Nessa última, fica evidente o processo do escritor: a detração da companheira, a colocação dela como dejeto tem um efeito inebriante para Joyce. Na carta de 6 de dezembro de 1909 ele afirma: “Choquei você com as coisas sujas que te escrevi. Talvez você ache que o meu amor é uma coisa obscena. É, querida, em alguns momentos […]” (JOYCE, 2012, p.97). E por fim, na mesma carta, ele escreve sobre o lugar-dejeto que Nora ocupa para ele: Adeus, minha querida, que estou tentando degradar e depravar. Como, em nome de Deus, é possível você amar uma coisa como eu? (JOYCE, 2012, p.98).
Podemos seguir com Lima (2015) e Dinardi (2020) e afirmarmos que era caro a Joyce a ideia da mulher como uma obra de arte do homem, dessa forma, a degradação e a depravação de Nora também tinha a função de negação da posição de sujeito de Nora ao mesmo tempo que elevação a construção da “Nora-obra”.
Devemos lembrar que Lacan afirma sobre Joyce: “[…] O que ele escreve é a consequência do que ele é […]” (LACAN, 2007,p.76) Dessa forma podemos sustentar a hipótese de que Nora funciona como um elemento fundamental para a estabilização do escritor (DINARDI, 2020), ou seja, é a presença de Nora nessa parceria que permite a estabilização do escritor e que traz como consequência a sua própria construção literária. Esse ponto é de fundamental importância, pois sabemos que Lacan salienta a função da escrita em Joyce, sendo ela a responsável pelo Ego do escritor, ou seja, uma invenção sinthomática que corrige o nó borromeano. Podemos sustentar que essa invenção não exclui a importância fundamental da parceria com Nora, pois ela é justamente a que garante um envelopamento do corpo do escritor e ainda, uma localização de seu gozo. Assim, se a escrita de Joyce é o artifício que permitiu o enodoamento, é justamente Nora que subjaz como a “luva” que garante o sentimento de vida do grande escritor.