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O Amor não sem o real 

Por Ruskaya Maia – Coordenadora Geral das II Jornadas EBP-LO

A idade média é considerada um período obscuro para a humanidade. Época em que a morte se apresentava, sob suas diferentes faces, sem trégua aos seres falantes. Além da miséria, do frio, da fome e das guerras, várias epidemias assolavam a população: Peste bubônica, peste negra, malária, lepra, sífilis, cólera… Ninguém estava resguardado da contaminação. No entanto, a noite da Idade Média vê florescer uma nova modalidade de amor. Entre tantas desgraças, aparece uma erótica cujo ideal se fez princípio de toda uma moral e de comportamentos exemplares. Um amor sublimado e levado até o extremo, que Lacan elevou ao estatuto de paradigma, o amor cortês foi também uma riquíssima criação literária, um verdadeiro exercício poético. O centro do quadro é ocupado pela Dama rodeada de estritas proibições e toda a lógica desse amor se fundamenta em contornar essa mulher. Para Lacan, o amor cortês é “uma maneira inteiramente refinada de suprir a ausência de relação sexual, fingindo que somos nós que lhe pomos obstáculo ”[1]. Um engano, um véu que os homens inventaram para saírem impunes da dificuldade de enfrentar o que não existe. Quanto à surpreendente produção do amor cortês no feudalismo, Lacan esclarece que são restos preservados da antiguidade para concluir que o amor é, por estrutura, impulsionado pelo impossível do laço sexual com o objeto, seja qual for a origem dessa impossibilidade. Diz Lacan, “Lhe é preciso, por assim dizer, essa raiz de impossível. Isto é o que eu disse ao articular este princípio: que o amor é amor cortês ”[2].

Desde a primeira lição do seu seminário 21, Lacan faz objeção à concepção do amor como conhecimento. Amor não é conhecimento, é acontecimento, “coisas que acontecem quando um homem encontra uma mulher ”[3]. Embora não haja relação sexual, o amor é um fato. Mas, por quais caminhos se ama uma mulher? Talvez seja essa a pergunta com o maior número de respostas que existe, diz Lacan, mas ele elege uma: Por acaso, pela boa sorte (bon heur). E, então, vai formalizar o acaso no nó borromeano: são três registros, três anéis de corda e a questão se centra em qual dos registros estará no meio enlaçando os outros dois. “O que nos demonstra, o anel de fio do Imaginário tomado como meio? ”[4] nada mais nada menos o que pode ser chamado de amor.  Aqui o amor está no lugar que teve desde sempre. O Imaginário, então, enlaça as palavras com o real do acontecimento amor. Mas, Lacan faz um pequeno deslocamento no que diz respeito ao Imaginário tal como era concebido pelo amor cortês: o amor é o imaginário específico de cada um, que une certo número de pessoas eleitas não completamente ao acaso. Então aqui o amor é relançado como (a)muro, com a mola do mais-de-gozar entrando na partida e o gozo fazendo limite ao amor.

O amor então se revela como contingente: ele se torna possível quando o sentido sexual cessa de se escrever. O sentido das palavras não é mais que um aparato para o coito sexual, diz Lacan. É preciso então que o sentido das palavras desapareça. Apagar o sentido das palavras é demonstrar que a linguagem não está feita de palavras senão do laço gramatical. É o laço gramatical o que se haverá de romper para que o sentido das palavras se suspenda, deixe de se escrever e por aí o possível possa emergir.

Lacan redefine o significante como o que apenas existe, na verdade, aos montes, cada um podendo ser qualquer outro, nenhum é único, mas sim totalmente solto e é sobre isso que repousa a existência do Um, “que não é nem pensamento, nem quantidade, mas que escreve o gozo antes que haja sujeito algum para responder” [5]. Rompida a ideia de cadeia significante, segue-se que o S índice 2, o saber inconsciente, é um saber que não quer dizer nada, saber sem sujeito.  Algo disso se imprimirá segundo um caminho de puro acaso. “Esse saber indelével e ao mesmo tempo absolutamente não subjetivado se formará, real, ali, impresso em alguma parte” [6] e isso é o que será o inconsciente.

Aqui vemos Lacan anunciando o inconsciente real, resultante dos vestígios deixados no encontro do corpo com os S1 soltos, que escreve gozo antes do surgimento de um sujeito e por isso mesmo real. E então Lacan anuncia a cifra do amor: a cifra do amor é 2, o ímpar, quer dizer um dois que é mais de dois, implica o três, “a oculta trama do gozo pela qual o amor não promete a felicidade”[7]. E o muro, então, não é o da linguagem: É o gozo do Um que faz obstáculo ao encontro de dois.

“Quando lhes digo que não há relação sexual, esclarece Lacan, não disse que os sexos se confundam” [8], apontando aqui para o que ele chama de sexuação: os efeitos do significante fálico sobre o sexo biológico e o corpo imaginário. No entanto, ele faz a ressalva de que um mundo onde se introduz algo para fundamentar que na espécie chamada humana se é homem ou se é mulher é totalmente enigmático. Para Lacan o ou-ou (ou homem ou mulher) é logicamente insustentável, já que o que determina isso não é nem mesmo um saber mas um ‘dizer verdadeiro’, que Lacan define como o que, da contingência primeira de uma escritura do gozo, passa pelas tripas.

Quando nos escreve sua carta de almor (lettre d’âmour), Lacan nos apresenta uma formalização da maneira como os seres falantes (x) se relacionam com a linguagem (Φ). É importante salientar que não se trata de uma classificação de pessoas, mas da formalização de duas lógicas distintas, que têm como operador principal o falo ou a função fálica, organizador da diferença entre os sexos. O falo, verdadeiro semblante, é o responsável pelo fato de que, em todas as línguas, haja eles ou elas, mas mesmo assim, não faz com que a divisão entre homens e mulheres seja natural ou universal. Freud, no começo do século XX, já falava que a vida sexual ‘normal’ entre um homem e uma mulher não é natural, mas uma soldadura, que a bissexualidade está em todos e que não são os corpos que comandam a agitação sexual, mas sim as fantasias inconscientes.

Do lado esquerdo da chamada tabela da sexuação, então, inscreve-se uma lógica que inclui a todos enquanto obedecendo às razões do pensamento ordenado por uma sintaxe, sujeitos a uma lógica da medida, da razão, do conceito ou da coerência. Em contrapartida, do lado direito se inscreve o que a ciência expulsa, se pode falar, pensar, delirar, negar o que se queira, sem nenhuma demonstração nem provas de verificação. Aqui não há conjunto e nem o todo, senão o um por um e os fenômenos irrepresentáveis pela linguagem, ou seja, algo que excede ao gozo delimitado pelo falo, que Lacan nomeou Outro gozo. É desse lado que encontramos o inconfessável, o indizível, o que estremece os corpos, e, por isso, é desse lado o espaço que se abre para o discurso analítico.

Mas, desde que entramos no mundo, a língua mãe que nos banha estremece nosso corpo, com cócegas ou golpes, acolhimento ou rechaço, para o bem ou para o mal, esse gozo da lalíngua não cessará de palpitar na linguagem e estará entre o ser falante e seu mundo e sua sexuação, que só se produz na travessia de uma série de imprevisíveis encontros. A sexualidade então não é sem a eleição sexuada, mas também não é sem a singularidade do modo de gozar. A diferença anatômica fica tomada em um gozo tão de cada um que rateia a relação sexual. O a-muro então é definido como o muro que é o nó que a cada um determina, mas é daí também que pode surgir contingentemente o laço que suple a falha desse encontro.

Em sua aula de 22/05/2002 do curso de orientação lacaniana, Miller comenta a afirmação de Lacan de que o inconsciente é a política, fazendo uma contraposição dessa proposição com a afirmação freudiana de que a anatomia é o destino. A frase foi proferida por Lacan em seu seminário 14 e, segundo Miller, a partir do contexto em que ela está inserida, fica claro que a afirmação de Freud é sua matriz. Para Lacan, o que Freud ‘verdadeiramente disse’ não foi que a anatomia é o destino. Não é ao corpo anatômico ao qual Freud se refere para tentar explicar a diferença subjetiva da sexuação. Ao lado do corpo anatômico, podemos colocar em questão, então, o corpo vivo e distingui-los. O corpo vivo enquanto falante e enquanto isso condiciona seu gozo. É o gozo desse corpo, poderíamos talvez dizer, que lhe faz seu destino.

Essa afirmação de Lacan, de que o inconsciente é político,nos anima a considerar a civilização contemporânea e seus efeitos sobre o ser falante quando o capitalismo selvagem, mestre contemporâneo, pluraliza infinitamente as possibilidades de saturação da não relação sexual e o discurso da ciência, com sua ambição, avança em direção à tecnociência incidindo diretamente sobre os corpos. Vemos então proliferarem os semblantes da diversidade sexual, e também se multiplicarem os gozos que pretendem não responder à castração. Dessa forma, podemos dizer, a partir da lógica da sexuação, que a estrutura do todo cedeu à do não-todo. Essa afirmação, no entanto, seria suficiente para localizar a inscrição dessas novas sexualidades nas fórmulas da sexuação? Não poderíamos precisar melhor em que termos isso acontece? Ainda sob essa perspectiva, como fica o amor nesses arranjos contemporâneos, há, de fato, algo novo aí? Ou se trata dos velhos semblantes customizados para os tempos atuais?

Vivemos dias difíceis. Há pouco mais de um ano, o surgimento de uma cepa de coronavírus – o Covid 19 – bvem propagando a morte entre nós, dividindo a humanidade entre os que morrem, os que quase morrem e os que choram seus mortos. A devastação deixa seu lastro de tristeza, solidão, loucura e desesperança. Além disso, no nosso país, vivemos uma crise sanitária inédita que tem profundas raízes políticas: o ódio e o negacionismo, aflorados e legitimados como nunca, mal disfarçados num discurso pseudoreligioso tornaram-se bandeira de um absoluto desprezo pela vida humana. Nessa ‘idade média’ contemporânea em que vivemos, que amor pode florescer?

Numa conferência na Universidade de Milão proferida em 12 de maio de 72, Lacan faz uma consideração interessante a respeito do futuro do discurso analítico. Ele afirma acreditar que não se falará mais do psicanalista como descendente de seu discurso analítico, outra coisa aparecerá, um outro discurso, que sustentará um semblante, mas que se chamará o discurso PS. E ele continua “Um PS e depois um T, será o discurso PST. Juntem a isso um E e teremos PESTE. Um discurso que seria realmente uma praga (pesteux), totalmente dedicado ao discurso capitalista” [9]. Mas, como um contrapeso a essa espécie de pessimismo (pest-imismo), também encontramos a seguinte afirmação de Lacan: “o amo moderno é a burocracia e a tirania do saber. O discurso capitalista, global, é um falso discurso […], poderiam bastar, para furar sua pretensão – nada é impossível – um sintoma ou um amor” [10].

Podemos dizer que um amor que vai à contramão do discurso capitalista e que pode furar sua lógica é o amor que se dirige ao inconsciente, o amor de transferência, aqui tomado também como um acontecimento e, portanto, ligado ao real. Esse é o amor que suporta o ato analítico, que só triunfa ao tocar na equivocação do sujeito. É nesse sentido que podemos entender a precisão que Lacan traz nessa conferência em Milão sobre o discurso do mestre. Ele diz: “No nível do discurso do mestre, o que eu nomeei pra vocês agora há pouco de significante mestre, é isso, o de que me ocupo nesse momento: há Um. Pode haver aí uma implicação sobre o discurso analítico, a saber, um uso um pouquinho melhor do significante como Um” [11]. Seguindo a argumentação de Lacan, o discurso analítico é, então, algo que se diz muito precisamente no nível onde o significante é Um, o que faz com que uma análise funcione, por que é aí que se agarra o Um, é aí que há Um. O ato analítico, incidindo sobre o nó que é o analisante, como um instante de torção, ou mesmo secção de um laço, alcança as ressonâncias do dizer em lalíngua e muda a orientação ou mesmo faz surgir um novo nó – ou, nos remetendo à citação que Lacan faz do poema de Rimbaud, onde o amor aparece como o signo de uma mudança de razão – um novo amor.

É como uma pequena errância ‘une petite erre’ que Lacan descreve o título que dá a seu seminário 21 Les non dupes errent. Em seguida, ele descreve ‘erre’ como o movimento que acontece “quando algo é lançado e continua correndo mesmo quando cessa o que o propulsou” [12].  E, como faz tantas outras vezes em seus seminários, se dedica a analisar a etimologia desse termo, etimologia que pra ele é “pontuar o uso das palavras ao longo do tempo” [13]. Trata-se, na verdade, de colher os efeitos do uso e do tempo sobre as palavras, ou, ainda, de colher os efeitos do gozo sobre as palavras e, com isso, observarmos o transbordamento do sentido inerente à linguagem. O termo ‘errer’, por exemplo, vem de erro (não acerto) e de iterare, que quer dizer viagem. De iterare se retira o iter que é repetição. Tantas ressonâncias nos fazem entender o quão difícil, senão impossível, é capturar um sentido. Quando Lacan enuncia Les non dupes errent como outra forma de escrever o que se ouve como les noms du père, nessa pequena errância,onde “a língua se vê impulsionada para mais além do que acreditava dizer” [14], ele anuncia qual é o campo lacaniano, o campo do analisante, o campo que possibilita o ato analítico: a errância.

A força que lança o analisante em seu errar é o amor de transferência. Na busca pelo bem dizer ele diz sempre mais ou menos do que queria, tropeça, esquece, se equivoca, repete e segue dizendo as tolices que lhe ocorrem e só assim pode abrir a via para algo contingente. O ato analítico, imprevisível, toca a dimensão do Um e faz aí um furo e “abre a ferida de gozo, que não cessa de se escrever no sintoma” [15]. Um desenlace, um reenlace, um novo nó, um novo amor. Segundo Lacan, isso é o novo do discurso que Freud funda, que não se é tolo de qualquer coisa, senão do inconsciente que nos determina. [16] O que disso podemos testemunhar em nossa clínica hoje?


[1] LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. (1972-1973) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. p. 94
[2] LACAN, J. O Seminário, livro 21: Les non dupes errent. Aula de 08 de janeiro de 1974. Inédito.
[3] LACAN, J. O Seminário, livro 21: Les non dupes errent. Aula de 18 de dezembro de 1973. Inédito.
[4] LACAN, J. O Seminário, livro 21: Les non dupes errent. Aula de 18 de dezembro de 1973. Inédito.
[5] TÁBOAS, C. Um amor menos tonto. Buenos Aires: Grama Ed., 2015 p. 130. (Tradução livre).
[6] LACAN, J. O Seminário, livro 21: Les non dupes errent. Aula de 12 de fevereiro de 1974. Inédito.
[7] TÁBOAS, C. Um amor menos tonto. Op. cit., p. 63. (Tradução livre).
[8] LACAN, J. O Seminário, livro 21: Les non dupes errent. Aula de 18 de dezembro de 1973. Inédito
[9] www.pas-tou-lacan. Acessado em 15 de abril de 2021. Tradução livre.
[10] www.pas-tou-lacan. Acessado em 15 de abril de 2021. Tradução livre.
[11] www.pas-tou-lacan. Acessado em 15 de abril de 2021.  Tradução livre.
[12] LACAN, J. O Seminário, livro 21: Les non dupes errent. Aula de 06 de novembro de 1973. Inédito.
[13] LACAN, J. O Seminário, livro 21: Les non dupes errent. Aula de 06 de novembro de 1973. Inédito.
[14] TÁBOAS, C. Um amor menos tonto. Op. cit., p. 209. (Tradução livre).
[15] TÁBOAS, C. Um amor menos tonto. Op. cit., p. 71. (Tradução livre).
[16] TÁBOAS, C. Um amor menos tonto. Op. cit., p. 66. (Tradução livre).
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